domingo, 7 de abril de 2019

A Fortificação de Monção e a Lenda de Deuladeu

Portas de Salvaterra, Fortaleza de Monção
Bilhete Postal de 1955, Edição da Zona de Turismo das Caldas de Monção
Fotografia de Domingos Alvão, data anterior a 1946.


A província do Minho seria povoada nos mais recuados tempos da pré-historia, prova disso são os artefactos encontrados relacionados com as civilizações do paleolítico, neolítico e idades dos metais. A origem de Monção não é muito clara, estima-se que pela sua localização geográfica, limitada a norte pelo Rio Minho, que a separa de Espanha, a leste pelo município de Melgaço, a sul por Arcos de Valdevez, a sudoeste por Paredes de Coura e a oeste por Valença, seja certamente muito anterior a formação do país. Todavia só começa a ganhar algum protagonismo com a estratégia política de D. Afonso Henriques para o Alto Minho, cujos documentos incidem sobre os castelos de Pena da Rainha, Froião, Valadares e Melgaço.

Trecho das Muralhas e Margens do Rio Minho
Bilhete Postal s/d, Editora Foto Ideal, Monção.

A afirmação da vila de Monção aparece no reinado de D. Sancho I, a primitiva povoação existente por esta altura vê crescer em seu redor uma fortificação, hipótese não confirmada objetivamente, os historiadores estabelecem um paralelismo a outros castelos e fortificações emergentes pelo país correspondendo a uma consolidação dos efectivos populacionais do reino. 

Trecho do Amuralhado Vauban, Fortaleza de Monção
Bilhete Postal de 1955, Edição da Zona de Turismo das Caldas de Monção

Com maior certeza histórica foram as acções de D. Afonso III, nas Inquirições ordenadas por este em 1258, Monção aparece já como vila, facto que levou alguns autores a sugerirem que a fundação da localidade tenha sucedido nesta altura.

Aspeto Atual das Muralhas do Forte e da Vila de Monção
Foto de autor e data não identificados.

Estima-se que a fortificação tenha sido concluída em meados do século XIII, o Carta de Foral, passado a 12 de Março de 1261, permite inferir que a vila já estaria fortificada, ao referir os miles de Monçom, o que também é questionado por alguns estudiosos, sob o argumento da escassez demográfica da região à época.

Vista Sobre o Rio Minho e Salvaterra, Fortaleza de Monção
Bilhete Postal, n.º 22, Edições Panorama, c. 1960.

No que concerne a tipologia do castelo, não há dúvidas de que é gótica, com o seu perfil ovalado, a torre de menagem associada a uma das portas e o carácter ortogonal dos seus arruamentos. Das muralhas mediavas construídas no tempo de D. Dinis, que entre 1305 e 1308 patrocinou a reforma integral da fortaleza, resta apenas um trecho junto ao passeio dos Néris integrado na nova fortaleza. 

Rua Direita, Fortaleza de Monção
Bilhete Postal de 1955, Edição da Zona
de Turismo das Caldas de Monção
Fotografia de Domingos Alvão, data anterior a 1946.

Composto por duas portas, uma principal, defendida pela torre e outra mais pequena, que levava à zona ribeirinha, a malha urbana interna era atravessada pela rua direita, que colocava em comunicação as duas entradas e a igreja matriz também construída no início do século XIV. Por sua vez, outros arruamentos cruzavam a rua principal, definindo-se, assim, uma tendência urbanística ortogonal, à semelhança do que aconteceu com outras povoações ribeirinhos como Caminha.

Vista do Baluarte do Suoto, Fortaleza de Monção
Foto SIPA, 2005.

Anos de desenvolvimento económico e demográfico se avizinharam e a povoação prosperou, sendo que no reinado de D. Fernando (1367-1383), na sequência da guerra com os castelhanos, estes invadem Portugal e fixam-se em Monção, o castelo foi sitiado pelo exercito às ordens do rei  Henrique II de Castela, por volta de 1369 um retrocesso atinge a região.

Porta do Paiol, Fortaleza de Monção
Foto SIPA, 2005.

Com a morte de D. Fernando, vivem-se dois anos de intensa crise e os homens bons de Vila Nova de Cerveira, Caminha e Monção enviaram mensagens ao Condestável D. Nuno Álvares Pereira, declarando-se verdadeiros portugueses e entregando-lhe voluntariamente essas povoações e seus castelos. No século XV, em altura ainda desconhecida, mas que pode corresponder aos melhoramentos ordenados por D. João I, construiu-se uma couraça a envolver a antiga muralha dionísio, uma espécie de muros paralelos que defendiam os acessos ao núcleo das muralhas, as atualizações da arquitetura militar eram constantes numa tentativa de acompanhas os exigentes desenvolvimentos da arte da guerra.

Baluarte de Nossa Senhora da Conceição, Fortaleza de Monção
Foto de autor e data não identificados.

Mas a grande reforma militar de Monção teria lugar no século XVII, na sequência nas novas táticas de guerra na utilização de artilharia móvel que exige fortificações com estruturas de outro tipo, um técnica de defesa designada por "Vauban" que lhe deu a forma estrelada e de fortaleceu as muralhas,as obras iniciaram-se em 1656, sob projeto do engenheiro militar Miguel de l'Escole, condução do mestre João Alves do Rego. 


Baluarte de Nossa Senhora da Vista
Foto SIPA, 2005.

Os trabalhos de fortificação foram concluídos no inicio do século XVIII, sob direção do engenheiro Manuel Pinto Vilas-Lobos, e do conde de Lippe, na década de setenta do mesmo século.

Baluarte de São Luís e Guarita
Foto SIPA, 2005.

As velha muralhas que delineavam a praça de guerra, seriam reformuladas, em particular a frente para o rio Minho, na base esteve o projeto de raiz que visou proteger a moderna vila de Monção, que há muito se havia expandido para alem do núcleo medieval.

Postigo das Caldasa, Fortaleza de Monção
Foto SIPA, 2005.

Com nove baluartes, a maior parte dos quais em cunha, e cinco portas, de salientar a de Salvaterra, que contém as armas nacionais, e que permanece intacta, o novo perímetro muralhado previu a inclusão de amplos espaços de manobra, que ainda hoje permanecem não edificados, o que permitia uma maior mobilidade e racionalidade na movimentação e disposição das tropas, ao mesmo tempo que instituía uma nova centralidade interna, marcada pelo rossio, largo onde, nos anos seguintes se construiu o Pelourinho e a Igreja da Misericórdia.

Cortina Interrompida pela Abertura da Avenida das Caldas
Foto SIPA, 2005.

Ainda no século XIX, na sequência da abertura de novas artérias da vila a fortaleza com um perímetro aproximado de 1500 metros, viria ser gravemente mutilada para abertura de estradas de passagem para o Caminho de Ferro, como a estação no interior da Vila.

Casamatas Ladeando Porta do Rosal, Fortaleza de Monção
Foto SIPA, 2005.

Foi classificado Monumento Nacional por Decreto de 16 de junho de 1910, no primeiro quartel do século XX procederam a algumas obras de restauro dos Monumentos Nacionais no troço de fronte para o Hospital, correspondente à zona de Néris.

Arco de Valdavez, Fortaleza de Monção
Foto de autor e data não identificados.

Hoje é possível percorres praticamente todas as muralhas intactas e duas das cinco portas iniciais mesmo as partes que foram rasgadas para estabelecer vias de comunicação foram assegurados passadiço para permitir que a visita às muralhas seja efetuada sem interrupções.

Planta da Fortaleza de Monção - 1802
Legendas: 
A - Baluarte de S. Bento
B - Baluarte de N.ª Sr.ª da Conceição
C - Baluarte de S. Pedro (Souto)
D - Baluarte de St.º António (Cova do Cão)
E - Baluarte de S. João (Terra Nova) 
F - Baluarte Nª. Sr.ª da Guia 
G - Baluarte de S. Luíz (Salvaterra) 
M -Baluarte de S. José 
H - Baluarte de Nª. Sr.ª da Boavista 
N - Baluarte de Nª. Sr.ª do Loreto 
I - Baluarte de S. Francisco 
L- Baluarte de S. Felipe (Néris) 
X -Caldas 
Z – Palheiro 
1 - Porta do Sol 
2 - Porta das Caldas ou Fonte da Vila 
3 - Porta de S. Bento 
4 - Porta de Salvaterra 
5 - Porta do Rosal 
6 - Quartel Cavalaria para 120 Cavaleiros 
7 - Casa do Governador 
8 - Convento de St.º António 
9 - Igreja Matriz 
10 - Misericórdia 
11 - Capela da Sr.ª do Loreto 
12 - Convento dos Congregados 
13 - Quartéis para 600 a 700 homens 
14 - Armazém 
15 - Armazém de pólvora 
16 - Cerca do arruinado Convento de Freiras


A lenda do Castelo de Monção e da Deuladeu Martins;


Brasão Municipal de Monção.
Gravura da obra As Cidades e Villas da
Monarquia Portugueza que Teem Brasão d'Armas
(III vols., 1860-62; data na capa do vol. I, 1865),
de Inácio de Vilhena Barbosa (1811-1890).
Foto In blogdaruanove.blogs.sapo.pt/.

No auge das guerras entre D. Fernando I de Portugal e Henrique II de Castela, o castelo de Monção foi sitiado pelo exercito castelhano comandado por Pedro Rodrigues Sarmento da Galiza, toda a vila de Monção é cercada após muitos dias de combate.

Praça Deu-la-deu, Monção
Bilhete Postal n. 5, Edição SNI, Coleção Panorama, s/d.
Também conhecido como Terreiro, onde se realizam grandes concentrações populares,
particularmente as que assinalam as festas em honra do Corpo de Deus e Nossa Senhora das Dores.
  Por outras palavras representa o "centro cívico da população". Foto anterior a calçada portuguesa
 que hoje reveste a praça.

Depois de vários dias cercados, os mantimentos começam a faltar, só resta a rendição e entregar o castelo aos castelhanos. Foi então que uma ideia imerge da fraqueza transformando-a no instrumento de ações grandiosas, inspirada, uma mulher Deuladeu Martins, esposa do capitão-mor daquela vila, Vasco Gomes de Abreu, uma dessas mulheres que a História nos aponta como exemplo, perante a inutilidade das armas e a dominância da fome que evidenciava a fragilidade dos homens que valentemente resistiam à tomada do castelo pelos castelhanos, perante as ultimas porções de farinha insuficiente para reverter a fome que abundava na praça, põe em pratica um arrojado plano, sabendo que também aos inimigos começava a escassear o pão, pega da farinha, manda-a amassar e cozer, e, depois, enchendo um cesto com os pães que ela produzira, sobe às muralhas, e daí os lança aos Castelhanos, dizendo-lhes:

— A vós, que não podendo conquistar-nos pela força das armas, nos haveis querido render pela fome, nós, mais humanos, e porque, graças a Deus, nos achamos bem providos, vendo que não estais fartos, partilhamos o pão que abunda nas provisões do castelo, e vos daremos mais, se o pedirdes.

Brasão de Armas da Vila de Monção
Tal como se encontra no Livro de Brasões das Cidades e Vila,
Trabalho da autoria do Rei de Armas Índia, Francisco Coelho, 1675.
A letra e desenho "tosco" do brasão conjugam-se para expressar que a localidade 
heraldicamente representada era uma povoação de habitantes entregues a agricultura 
em território sujeito a ataques do inimigo e só poderia viver e prosperar da fortaleza.

Os Castelhanos, vendo ali os pães frescos e saborosos, ficaram tão desconcertados com esta acção, crentes de que a praça estava abundante de mantimentos, devoraram-nos num instante para logo levantarem cerco desesperançosos de conseguir entrar na vila.

Estátua de Danaíde, em Monção.
No brasão, pode-se ver a figura de Deu-la-deu
Foto de Nmmacedo em 2010.

Em reconhecimento deste feito os moradores ergueram uma estátua a Deuladeu Martins e eternizaram a sua memória incluindo a sua representação nas armas da vila, figuradas no Brasão de Monção.

Observações:



A aproximação ou utilização de fatos históricos na descrição da lenda tem gerado grande controvérsia e indignação por parte dos historiadores, António Moraes Reis, Centro de Estudos Regionais, Viana do Castelo, explica que " A designação de terra de Deuladeu é um disparate, visto que nada diz. A tão estafada Deuladeu, está provado, com investigações sérias e com documentos, que não existiu. Não existiu como pessoa nem existiu o apregoado cerco de Monção, onde se diz que ela se notabilizou."

Com efeito existem semelhança com outras lendas também associados a feitos protagonizados por mulheres, como é exemplo de Abedim e o Castelo da Penha da Rainha. Generalizam-se um pouco por toda a Europa medieval contos de feitos heróicos, astutas proezas de causar intimidação e vergonha à engenharia militar, cujo relatos carecem de fundamentação evidente. Também os pães são convertidos em outros alimentos  como vacas ou trutas gigantes, etc.

Personagens do Filme "Cálice Sagrado" de 1975

Na verdade esta sabedoria popular vigorava por toda a Europa até no celebre filme "Monty Python e o Cálice Sagrado", uma sátira a diversos acontecimento da idade média em que o Rei Arthur sai em busca do Calice Sagrado, num dos episódios uma vaca é jogada das muralhas de um castelo, simbolizando a fartura de mantimentos, como resposta ao inimigo que havia montado cerco em volta do castelo.

Os historiadores apontam uma razão comum ao aparecimento de lendas associadas a fatos históricos, o principio comum converge para a modelação das realidades menos favoráveis da história das regiões e até países, uma forma de desvalorizar os feitos que menos enaltecem a história e o orgulho das populações.

Fontes:
Uma Monografia de Monção, ROCHA, J. Marques, Edições ASA, 1988;
Fortaleza de Monção, Direção Geral do Património Cultural, 2011;
Sistema de Informação Para o Património Arquitectónico;Noé, Paula 1992-2008; 
Castelos de Portugal; Roteiro e Lendas; Volume 1, Parafita, Alexandre, 2018;

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