sábado, 20 de abril de 2019

A Ruína do Templo Romano em Évora como nunca viu...

Templo Romano de Évora com adaptações medievais, 1869.
Fotografia (P & B) de Jean Laurent, Arquivo da C. M. de Évora.

O Templo Romano de Évora, monumento ímpar em Portugal, com mais de dezanove séculos de existência, teve a sua estrutura afetada a surpreendentes utilizações, de entre elas o culto pagão para a qual foi erigida, mas também serviu o culto islâmico, transformada em mesquita, o culto cristão, em determinado período terá mesmo sido sede de diocese, posteriormente foi transformada em casa-forte do Castelo, nessa sequência foi transformada em celeiro e mais tarde em matadouro municipal. Só em finais do século XIX se começou a dar a devida importância arquitetónica e histórica do belo edifício nacional, libertando-o de todas as estruturas que ao longo dos séculos foram contaminando a sua arquitetura original.


Templo Romano de Évora, Postal Ilustrado In delcampe.net.


Este templo, na sua forma original, foi construído numa época em que um grande império dominava toda a bacia hidrográfica do Mediterrâneo. O domínio de técnicas arquitetónicas avançadas viria a contribuir de forma definitiva para a expansão do seu império, as suas construções abrangiam todas as ares de desenvolvimento social, desde acessos, condutas, centros urbanos e edifícios religiosos e culturais, entre outros.

Templo Romano de Évora, Postal Ilustrado In delcampe.net.

Na Lusitânia a presença romana foi intensa, várias cidades tiveram grande relevância para o império, também Évora(Ebora) foi brindada com grandes construções das quais poucas chegaram aos nossos dias com alguma conservação, é uma verdadeira sorte algumas estruturas terem sobrevivido à fúria dos povos, nomeadamente árabes, que precederam os romanos neste território. As invasões que a região, hoje portuguesa, sofreu a norte sobretudo pelos suevos e visigodos e a sul pelos árabes, culminaram da destruição do império romano, a fúria, a natureza voraz e o fanatismo religioso destes povos refletiu-se sobre tudo das estruturas mais representativas dos antecessores, no caso especifico dos edifícios religiosos, eram destruídos e reedificados com os respetivos ajustes da nova religião. Curiosamente, os lugares sagrados das várias religiões que ao longo dos séculos foram dominando o território nacional, foram coincidindo o que contribuiu para a perda da riqueza arquitectónica dos edifícios que iam sendo substituídos, atualizados ou simplesmente destruídos.
Todavia nem todos os edifícios foram assolados ao nível de muitas outras cidades completas que levaram consigo a sua memória e a sua arte, os monumentos que ficaram assistiram à sua volta a tumultuosas transformações reajustando-se às exigências circunstanciais mas sem alterar a sua verdadeira essência arquitetónica. 

Templo Romano de Évora, Postal Ilustrado In delcampe.net.

Finalmente quando Portugal começa a consolidar-se como reino, expulsando todos estes povos invasores, começa a consolidar o território como uma nação civilizada conservando muitos dos importantes vestígios de antigas civilizações. Durante o perigado da formação dos reinos, conquistas e reconquistas, várias origens religiosas coabitaram respeitando os seus diferentes cultos mutuamente, que permitiu ainda assim conservar a grande variedade e origem arquitectónica que chegou aos dias de hoje. 

Templo Romano de Évora, Postal Ilustrado In delcampe.net.

Outros houve que embora tenham persistido à formação do Reino de Portugal, vieram a ser destruídos depois da constituição deste como Império. Com efeito, a febre da reconstrução do império português, desvalorizou a existência dos monumentos da antiguidade, este fenómeno verificou-se sobretudo no reinado de D. João III, com o início do renascimento português, movimento cultural que assinala o fim da idade média e o início da idade moderna. Durante o seu reinado, na sequência da sua intensa devoção religiosa, foi instaurada a Inquisição, desta feia a igreja é dotada de um poder sem precedentes que vai aproveitar a colonização para propagar a religião sobretudo através dos jesuítas e por cá, vai desmantelar uma série de templos por não se ajustarem às necessidades da igreja. 

Templo Romano de Évora com adaptações medievais
Desenho no "Penny Magazine" de 6 de junho de 1835.

No seguimento das novas politicas, o Santuário Endovélico do Alandroal foi completamente demolido vendo as suas colunas jônicas de mármore, serem aproveitadas para a construção do Colégio Espírito Santo em Évora por orientação do Cardeal Infante D. Henrique, o mesmo viria a acontecer com o Arco Triunfal Romano da Praça de Évora, mandado construir por Quinto Sertório em honra das vitórias lusitanas contra os romanos, cuja suas colunas de baixo-relevo são também transferidas para o colégio jesuíta. Não destruído mas totalmente descaracterizado terá sido o Palácio de Quinto Sertório onde segundo Gaspar Estaço (1560-1626) foi construído o Convento do Salvador, segundo referência de 1625. Também fidalgos foram destruindo edifícios romanos arruinados que ficavam nas periferias das suas propriedades, era muito comum a utilização de materiais nas ruínas e dos castelos para novas construções. 

Templo Romano de Évora, foto de Laila Torres, 2015, In 500px.com

Hoje, a ruína pode ser encarada como um mero objeto de contemplação, uma janela que nos permite recuar no tempo e imaginar a vida que preenchia os espaços vazios e inertes da sua existência, o sentimento de perda domina a consciência nesse momento, por outro lado, felizmente cada vez menos, pode ser encarada como recurso material funcional de utilidade renovada no sentido desconstrutivo e descaracterizado.

Templo Romano de Évora com adaptações medievais
Ilustração de James Murrhy,1760-1814 in "Travels in Portugal".

Posto isto não deixa de ser intrigante como terá resistido o Templo Romano de Évora e o que terá contribuído para que este tenha chegado aos nossos dias ao contrário de muitos outros seus contemporâneos. O edifício esteve durante muito tempo envolto em dúvidas quer a nível da época da sua fundação, quer a nível da divindade que consagrava.
Para alguns autores o edifício terá sido construindo por Quinto Sertório nos anos 70 antes de Cristo,  e seguindo esta tese, assumiu-se que este era dedicado a Diana, divindade de sua eleição. Para outros autores a construção deste templo datará de período mais recente e sem grandes evidencias exclusivas da divindade consagrada. Com efeito não existem documentos que atestem a sua origem, pelo que, as teorias defendidas apontam para um conjunto de factos conhecidos que permitem a sua consolidação, no caso de Quinto Sertório, sabe-se que este teve grande protagonismo no desenvolvimento da malha romana em Évora, as primeiras muralhas e torres de defesa que enquanto líder dos lusitanos, permitiram defender a cidade das investidas romanas, o grande aqueduto abastecedor de água da qual a cidade dependia, a fonte e o arco triunfal, e o seu palácio hoje convertido em convento, apontam para que também este tenha estado envolvido na construção deste belo templo.


Pormenor das Colunas do Templo Romano de Évora, foto do arquivo historiadeportugal.info.

Por outro lado, esta corrente é contestada  por outras alegando que os capitéis das colunas do templo são possuidores de uma perfeição artística que ainda não tinha atingido este grau de desenvolvimento no tempo de Sertório, assim como a utilização do mármore e granito simultaneamente, esta teoria ganha força uma vez que sabemos hoje, que o desenvolvimento nas artes da civilização romana atingiu o seu auge numa época posterior e neste seguimento, o templo poderá ter sido construído entre o século I e século III, depois de Cristo, na sequência das intervenções na malha urbana da cidade, empreendida  já em pleno Império Romano, e neste seguimento também o culto terá sido de consagração imperial, os imperadores romanos instituíram o seu estatuto equiparado a divindade, construindo edifícios de culto em sua homenagem. No esclarecimento da divindade ao qual o culto do templo estava consagrado, também as colunas desempenharam um papel esclarecedor, tendo em conta que os romanos antigos destinavam a ordem coríntia aos deuses e a jónica às deusas, e apresentado as colunas do templo capitéis esculpidos ao modelo coríntio, poderá ficar descartada de uma vez por todas, que o templo nunca terá sido construindo para prestar homenagem a Diana, deusa da guerra.

Ao fundo a Igreja dos Lóios e a direita o Templo Romano de Évora,
Postal Ilustrado In delcampe.net.

O império Romano viria a revelar-se demasiado grande e a gestão centralizada começa a quebrar-se , perdendo a capacidade de defender a sua área demasiado extensa e o império declina permitindo a entrada de outros povos nos seus territórios  os árabes estabelecem-se na região durante cerca de quatro séculos e meio, nesse período, o templo terá sido convertido em mesquita até que em 1166, a cidade é tomada por D. Afonso Henriques, e o templo convertido à fé cristã. Estudos apontam que o templo romano terá sido Sé até 1204, ano em que o Bispo D. Paio transferiu titulo para a nova construção que ainda decorria, consagrada a Nossa Senhora da Assunção.

Templo Romano de Évora, Postal Ilustrado In delcampe.net.

Segundo um documento interceptado, no antigo arquivo da catedral, pelo Cónego D. João da Annunciada(1785-1847), no século XIV, terá o templo, aproveitado  as suas estruturas castelares,  nele integradas nos períodos visigodo, muçulmano e primeiras centúrias da dinastia de Avis, para nele instalar um celeiro do qual se terá servido durante um tempo indeterminado. No inicio do século XV, por Alvará da Rainha D. Beatriz de Castela, mulher de D. Afonso IV, confirmado por sentença dada em Coimbra pelo rei D. João I (22-3-1403), a fortaleza é convertida em matadouro público. Sabemos porém que em 1836, António José d'Avila(1807-1881), Conde d'Avila, na qualidade de Governador Civil de Évora, decide dignificar o monumento, livrando-o de tal constrangedora condição, encerrando as suas mórbidas funções, passando o edifício para alçada do município que se limitou a conservar o templo jogado à inutilidade.

Templo Romano de Évora com adaptações medievais, Reprodução fotográfica: António Franco,
1945, Arquivo Histórico da Câmara Municipal de Évora.

Em pleno século XIX o monumento apresentava-se bastante alterado face à sua arquitetura romana original, só uma parte do pórtico, correspondente a um conjunto de colunas alinhadas sobre um envasamento e encimadas por uns capitéis que sustentem o que sobrou de uma arquinave. Todo o resto que integra as fachadas do edifício é  construído durante as campanhas de adaptação mudéjar e manuelina. Os elementos que mais se destacavam da fachada do edifício eram as empenas cegas entre colunatas com estas parcialmente visíveis como se de vigas se tratassem,  de arquitetura militar, as ameias com merlões em forma de pirâmide, da arquitetura religiosa, uma pequena torre sineira central na fachada. Este ultimo, provavelmente a ultima das adaptações logo após da conquista da cidade ao mouros a quando da conversão da mesquita para templo cristão. Também a porta que se encontrava entre as duas coluna centrais teria sido aberta pela mesma época da construção da pequena torre, por essa altura todo o envasamento se encontrava suterrado praticamente ao nível da dita porta, apresentando um pequeno desnível de apenas dois ou três degraus. Do lado oposto, voltado para o Paço Episcopal tem uma porta central também entre colunas, em tudo semelhante mas de maior dimensão.

Templo Romano de Évora com adaptações medievais
Ilustração com base em fotografia, In "Archivo Pittoresco", n.º 40, 1865

Durante uma visita de D. Fernando II e D. Mairia II à cidade de Évora, por volta de 1836, no início do seu recente reinado, logo depois do casamento, debruçaram a suas atenções sobre o peculiar templo, percebendo o potencial que este dispunha suterrado, ordenando que a cota da rua e da praça fosse rebaixada deixando a descoberto o seu envasamento, aproveitando para demolir também alguns anexos ao alçado norte que destoavam por completo da estrutura original. Esta primeira intervenção no edifício, representa também uma das primeiras intervenções arqueológicas em Portugal, durante a qual se descobriram os tanques pertencentes a um primitivo aqueduto.

Templo Romano de Évora, ao fundo a Igreja dos Lóios, Postal Ilustrado In delcampe.net.

Apesar do avanço, a intervenção foi limitada, pouco ou nada foi feito para restabelecer a fachada original, as empenas cegas entre as colunatas foram mantidas ainda durante algumas décadas. As belas colunas caneladas e capiteis coríntios lavrados com grande perfeição e bem conservados, eram de facto merecedores de serem admirados. As dezasseis colunas repartidas pelas três frentes, são muito semelhantes às que foram construídas para sustentarem o vestíbulo do Teatro D. Maria II, em Lisboa.

Pormenor das colunas do Templo Romano de Évora, Postal Ilustrado In delcampe.net.

Em 1862, na sequência de intervenções nas ruas envolventes ao monumento e escavações de terrenos envolventes, apareceram fragmentos de capitéis, base de uma estátua, um dedo de figura colossal, fragmento de mão segurando uma pátera e pedaço de altar com resto de inscrição latina. O facto dos fragmentos agigantados aparentemente pertencerem a uma figura masculina, parece corroborar o ponto de vista científico e anular o tradicional em relação ao culto prestado no templo. 

Templo Romano de Évora, ao fundo a Torre da Sé de Évora, Postal Ilustrado In delcampe.net.

Com efeito na segunda metade do século XIX, a arquivologia ganha grande força em Portugal, e na sequência dos artefactos descobertos em Évora, em 1963, o historiador Dr. Augusto Filipe Simões(1835-1884), director da Biblioteca Pública de Évora, propõe o desmantelamento das estruturas medievais, permitindo a reposição da "traça original" do Templo. Finalmente em 1870, por aconselhamento de Augusto Filipe Simões e principalmente pelo rei D. Fernando II, o Presidente da Câmara o Dr. Manuel da Rocha Viana manda desobstruir as colunatas originais do templo, recuperando o quanto possível as suas linhas originais, sob assistência técnica do cenógrafo italiano Guiseppe Cinatti.

Templo Romano de Évora, ao fundo a Torre da Sé de Évora, Fotografifa de Ricardo Sérgio, 2017.

Classificado como Monumento Nacional, por decreto, desde 1910, de linhas assumidamente clássicas, é o monumento português que melhor representa a ordem coríntia, pertence a uma tipologia que assistiu ao seu desenvolvimento especialmente no território da Península Ibérica, esta estrutura demonstra uma convivência plenamente harmoniosa entre materiais de construção tão diferentes, como o mármore e o granito.

Templo Romano de Évora, ao fundo a Torre da Sé de Évora, Autor desconhecido, data atual.

No seguimento de sondagens levadas a cabo pelo Instituto Arqueológico Alemão, efetuadas de forma continuada desde os finais do século XX,, dirigidas por T. Hauschild e com a colaboração do arquiteto português Pedro Fialho de Sousa da Faculdade de Arquitetura da Universidade de Lisboa, são efetuadas escavações que apontam que o Templo seria rodeado por pórtico monumental e um espelho de água. Já em 2017 o edificio foi alvo de limpesa e restauro.

Fontes:
Espaços e Paisagens, Antiguidade clássica e heranças Contemporâneas, Volume 3, Francisco e Jorge Oliveira e Manuel Patrício, 2012; 
“O Arco Triumphal Romano da Praça de Evora”, "Archivo Pittoresco", n.º 36, 1863;
 "Templo Romano em Évora", "Archivo Pittoresco", n.º 40, 1865;

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