sábado, 6 de abril de 2019

A Casa do Passal do Cônsul Aristides de Sousa Mendes, como nunca a viu...

Vista da propriedade de Aristides de Sousa Mendes, Cabanas de Viriato

Bilhete Postal n.º 16, Série Cabanades de Virato,Comemoração do Centenário do Cruzeiro, 1940,este e outros postais em: www.delcampe.net.


A Casa do Passal ou Vila de São Cristóvão (Fundação Sousa Mendes)


Casa Original da Quinta de São Cristóvão, Sec. XIX
Foto extraída de: fundacaoaristidesdesousamendes.pt

Na remota localidade de Cabanas de Viriato,  Concelho do Carregal do Sal, Viseu, mesmo em frente ao cruzeiro da freguesia, na propriedade agrícola denominada por Quinta de São Cristóvão, existiu até a década de 20 do século XX, um pequeno solar pertencente à família da Angelina de Sousa Mendes, esposa de Aristides de Sousa Mendes. Nos anos 20, a mesma é objecto de requalificação, sendo reconstruída e ampliada pelo casal, para servir de residência da família, sobretudo em alturas de férias, pois dada a sua profissão, passavam a maior parte do tempo fora do país.

Casa do Passal da Quinta de São Cristóvão, c.1920
Foto extraída de: fundacaoaristidesdesousamendes.pt

O novo edifico, um imponente palacete de arquitectura ecléctica, de inspiração francesa, ao gosto das beaux-arts do segundo império, estilo característico dos finais do século XIX. 
Composto pro três corpos de planta rectangular, o corpo principal integrado pro três pisos, sendo o ultimo piso do tipo mansarda com várias janelas retangulares de arcos abatidos, de dimensão variada e um arco quebrado ao centro, toda a mansarda é composta por estrutura em madeira revestida a folhas metálicas que sustenta um telhado de quatro águas. As fachadas dos pisos inferiores, em alvenaria, rasgadas por vãos de perfil em volta perfeita verificado nas seis janelas e porta de entrada nobre ao centro, encimada por arquitrave e emoldurada por pilastras que sustentam a varanda do piso superior.

Casa do Passal de Aristides Sousa Mendes, Cabanas de Viriato c.1930
Esta e outras fotos em: vidaspoupadas.idiplomatico.pt

Ao nível do primeira andar, marcado pela moldura simples ao longo da fachada, destacam-se  quatro janelas rectangulares que ladeiam três portas centrais de acesso a varandas da sacada limitada por um gradeado clássico, a porta central é destacada por encimar um brasão e enquadrar um avançado na varanda, sustentado por dois pilares centrais que se destacam e enquadram também a entrada nobre do piso inferior. 

Casa do Passal de Aristides de Sousa Mendes, Cabanas 
de Viriato, c.1940 Esta e outras fotos em: i.pinimg.com/

Os dois corpos inferiores, laterais que integram a fachada, o primeiro até ao nível do segundo piso, dando continuidade ao remate de todo o imóvel, encimado por placa. O outro atinge cota do primeiro piso, do qual se destaca a saliência de uma chaminé ao nível do terceiro piso do corpo principal, rematado por telhado de um único caimento lateral.

Avenida da Igreja, Cabanas de Viriato, s/d
Postal Ilustrado Supercor, Portugal Turismo, Beira Alta, Portugal
este e outros postais em: : www.delcampe.net.

No seu exterior destaca-se um Cristo crucificado esculpido em granito, ao lado da quinta existe também um Cristo Redentor, composto pro três blocos de pedra, que Aristides Sousa Mendes, havia trazido de Louvainne, Bélgica em 1933, o transporte dos blocos foi assegurado por comboio.

Escadaria Interior, antes da reabilitação, 2009
Foto de Sónia Pinto Basto in SIPA.

No seu interior são de destacar os seus tetos decorados com pinturas sobre painéis de madeira, no hall de entrada um brasão também pintado exibindo duas águias e duas espadas que representam os Abranches, o leão os Castelo Branco, as folhas de figueira os Figueiredo e as cinco asas os Abreu, ainda no seu interior, escadarias em todos os pisos também em madeira e belos vitrais, paredes revestidas por madeira e ainda uma pequena capela.

Teto em madeira pintada, antes da reabilitação, 2009
Foto de Sónia Pinto Basto in SIPA.

A Casa do Passal era utilizada pela família apenas nas férias de verão, em que, pelo mês de agosto viajavam do país onde era cônsul para vir usufruir do merecido descanso e matar saudada dos familiares,  para as crianças este regresso às origens era importante para que pudessem estabelecer raízes às suas identidades mundanas.

Fachada principal da Casa do Passal, 2010
Foto extraída do site de ruínas: ruinarte.

Quando Aristides de Sosua Mendes, em Bordésu e Bainoa, em 1940, plena Segunda Guerra Mundial,  decide passar vistos aos refugiados de guerra para que estes podassem entrar em Portugal, infringe ordens do Ministério dos Negócios Estrangeiros, chegando mesmo a criar alguma tenção diplomática entre Portugal, Espanha e França. Como consequência desses atos foi afastado do cargo de cônsul, passou a receber uma pequena subvenção que não fazia face às despesas que estavam a seu encargo. Ainda tentou exercer advocacia mas na sequência do processo disciplinar de que foi alvo, a Ordem dos Advogados não o permitiu.


Vista lateral da Casa do Passal, 2010
Foto extraída do site de ruínas: ruinarte.

Na sequência das dificuldades financeiras que Assistirdes Sousa Mendes passa depois de lhe ser retirado o cargo de cônsul, muda-se com a família para um pequeno apartamento em Lisboa, deixando a Casa do Passal ao abandono. Em 1953 foi notificado com uma acção legal por falta de pagamento de dívidas, de entre as quais a hipoteca sobre investimentos efetuados na Casa do Passal, o tribunal decidiu que teria que pagar prestações mensais superiores a um terço da sua já penalizada subvenção, esta taxa de esforço não estava dentro das suas capacidades, como consequência iria acabar por entrar em incumprimento. 

Frontão encabeçado por brazão na Casa do Passal 2010
Foto extraída do site de ruínas: ruinarte.

Depois da sua morte em 1954, a Casa do Passal, bem como o seu recheio, foram vendidos em hasta pública por causa de dividas que não tinham sido pagas. Apenas as paredes foram poupadas, ficando o seu interior completamente vazio e à mercê de estranhos.

Cristo Crucificado na Casa do Passal, 2010
Foto extraída do site de ruínas: ruinarte.

Em 1995, pelas mãos do arquiteto Óscar Santos, foi elaborado um protejo de transformação do imóvel numa unidade hoteleira pertencente a Quinta do Passal Sociedade de Empreendimentos Turísticos, S.A. chegou mesmo a ser diferido pela Câmara do Carregal do Sal a autorização do alvará, num entanto o projeto não avançou por falta de viabilização do financiamento da Direcção-Geral de Turismo.

Pormenor da falhada da Casa do Passal, 2010
Foto extraída do site de ruínas: ruinarte.

Em 2000 é constituída a Fundação Sousa Mendes com os objectivos de divulgar ato de consciência de Aristides de Sousa Mendes e de desenvolver e executar o projecto de recuperação da casa de família, a Casa do Passal e instalar um Museu dos Direitos Humanos. 

Pormenor da fachada da Casa do Passal, 2010
Foto extraída do site de ruinas: ruinarte.

A 12 de janeiro de 2000, por iniciativa de uma neta de Aristides de Sousa Mendes, é submetida a primeira proposta de classificação do imóvel, junto da Direção Geral do Património Cultura, outros despachos pareceres e homologações se seguiram, mas só em em maio de 2011, é classificado como Monumento Nacional pelo Ministério da Cultura.

Casa do Passal, vista lateral e traz, 2013
Foto de Paulo Esteves Pereira

Em junho de 2001 a Fundação Sousa Mendes adquire o imóvel à Quinta do Passal, Sociedade de Empreendimentos Turísticos, S.A., pela quantia de 120 mil contos, após largas negociações e com o apoio do Ministério dos Negócios Estrangeiros.


Aspeto da Casa do Passal, pouco antes das obras de 2014
Foto da Global Imagens, extraída em: noticiasaominuto.com

Em 2005, na sequência das avaliações para a classificação do imóvel, foi efetuado um estudo relativo ao seu estado de conservação pelo arquitecto Carlos Amaral, visando a viabilidade para o projeto de recuperação que previa também a construção de um auditório ou centro de interpretação nos terrenos anexos.

Casa do Passal em requalificação, 2015
Foto do arquivo da Centro Notícias.

Já em março de 2006, o edifício foi visitado pelo pelo embaixador de Israel em Portugal, que prometeu mobilizar fundos para a recuperação do mesmo.

Em 2013 o local foi cenário para uma exposição "Work Towards Fairness", do arquiteto norte-americano Eric Moed, no memsoa no a Direção Regional da Cultura do Centro anuncia o início das obras de reabilitação da casa. 

Casa do Passal em requalificação, 2015
Foto extraída no blog dos amigos de Sousa Mendes

Em 2014 são iniciadas as obras de reabilitação do edifício principal, com a preocupação de reproduzir fielmente a traça original que caracterizava o edifício. Nesta primeira fase iniciada em maio, teve como objetivo a reconstrução das estruturas da cobertura, dos revestimentos, reconstrução das janelas, substituição de caleiras e a pintura exterior. Com um investimento que rondou os 340 mil euros, a grande maioria dos fundos teriam proveniência de fundos comunitários, (Programa Mais Centro) e os restantes com origem na Direção Regional de Cultura do Centro.

Vista da fachada das traseiras da Casa do Passal, 2016
Foto do arquivo da Fundação Sousa Mendes.

Em março de 2017 foi assinado o protocolo de cooperação e da declaração de intenções referentes à segunda fase requalificação e conversão museológica da Casa do Passal que contempla a recuperação do interior da Casa do Passal. A elaboração de um projeto de requalificação do interior e conversão museológica é a peça fundamental para a candidata a fundos comunitários. Também Sousa Mendes Foundation dos EUA, mostrou-se disponível para cooperar com com fundos e recursos para avaliação do projeto.

Presidente da República homenagem Sousa Mendes, Casa do Passal, 2017
Fotografia extraída do site da Presidência da Republica Portuguesa.

A 3 de abril de 2017, no 63º aniversário da morte de Aristides de Sousa Mendes, o Presidente da República homenageou-o e condecoro-o com a Gran-Cruz da Liberdade, na Casa do Passal.


Fachada principal da Casa do Passal, 2017
Foto do arquivo do Dario de Notícias

Em novembro de 2017, através de concurso público, foi encontrado o projeto de Requalificação e Musealização da Casa do Passal, de entre as seis propostas apresentadas, o Projecto do gabinete "Rosmaninho & Azevedo Arquitectos" obteve unanimidade do júri. 

Em 2018, a viabilização do projeto contou com cerca de 800 mil euros provenientes de fundos comunitários, a contrapartida dos 15% será assegurada pela Câmara Municipal de Cargal do Sal.

Vista da entrada principal da Casa do Passal, 2019
Foto do arquivo do Jornal Sabado

A Diretora Regional da Cultura do Centro, Celeste Amaro, em comunicado à comunicação social, disse que a ideia é que a Casa do Passal possa abrir portas ao público ainda este ano, 2019, depois da necessária requalificação do inteiro a decorrer até meados deste ano.

Aristides de Sousa Mendes


Retrato de Aristides de Sousa Mendes, 2014
Pintura a óleo autor não identificado,
Foto partilhada no facebook por Mia Barcenas‎.

Aristides de Sousa Mendes do Amaral e Abranches (Cabanas de Viriato, 19 de Julho de 1885, Lisboa, 3 de abril de 1954). Nasceu na Casa do Aido em Cabanas do Viriato, concelho do Carregal do Sal, Viseu, no seio de uma família  aristocrática rural, católica e monárquica.


Aristides e o irmão gémeo César, pais e irmã mais nova.
Foto em: www.aristidesdesousamendes.com

Filho do juiz José de Sousa Mendes e de sua esposa D. Maria Angelina Ribeiro de Abranches, era gémeo de César de Sousa Mendes, que viria a ser Ministro dos Negócios Estrangeiros de Salazar.


Aristides de Sousa Mendes, 1906
Estudante de Direito em Coimbra.
Foto em:aristidesdesousamendes.com

Licenciou-se em Direito na Universidade de Coimbra em 1907, única no país naquela época, para onde iam estudas os filhos das elites, conjuntamente com o seu irmão gémeo e ao contrário do pai optaram pela diplomacia, neste mesmo ano muda-se para Lisboa.

Aristides Sousa Mendes e mulher, 1911.
Foto em:aristidesdesousamendes.com

Casou em 2009 com Maria Angelina Coelho de Sousa (Mendes), uma prima em segundo grau, cuja mãe, Clotilde Amaral de Abranches, também pertencia a uma linhagem nobre. Homem católico e conservador, de aspiração monárquicas, determinado nas suas opções e chefe de família extremoso, preocupado com o sustento e a educação da sua numerosa descendência, 14 filhos vingaram deste primeiro casamento.

Sousa Mendes com a farda Cônsul, 1910
Foto em: vidaspoupadas.idiplomatico.pt

Em 12 de Maio de 1910 é nomeado cônsul de 2ª classe em Demerara, na  Guiana Britânica para onde partiu com sua esposa e Aristides César, o seu primeiro filho, nascido no ano anterior. Na época, nesta região residia uma grande comunidade madeirense que trabalhavam na industria do açúcar. Todavia, não se deu bem com o clima chegando mesmo a apanhar malária, acabando por regressar a Portugal ao fim de um ano, deparado-se com a implantação da República, mudança que tambem não lhe deva ter causado grande contentamento.

Logo depois de se recuperar, esteve por um breve período na Galiza, sendo nomeado a 26 de agosto de 1911 a  Cônsul-Geral em Zanzibar, território africano sob administração britânica, onde esteve até março de 1918, com algumas interrupções em que veio para portugal, mais uma vez o clima tropical  terá estado na origem de problemas de saúde, não só da sua pessoa mas também de alguns familiares, em 1916,  toda a família adoeceu ou de malária ou de bronquite aguda e asma.

Aristides de Sousa Mendes com a família em Curitiba, 1918 Cônsul de Curitiba 1918.
Esta e outras fotos em: comunidadeculturaearte.com

Depois de muito insister para ser transferido em virtude da difícil adaptação, a 13 de fevererio de 1918 foi transferido para Curitiba, no Brazil,  quando a 27 de junho de 1919, na sequência das suas opções políticas, nomeadamente o apoio à causa monárquica, entusiasta  da contra-revolução de 19 de janeiro de 1919, profunda manifestação de revolta monárquica com utilização da força, que ficara conhecida como "Monarquia do Norte", conduziram à  sua colocação em situação de disponibilidade, na prática significava inacção ou uso irregular com redução salarialo despacho do Ministério dos Negócios Estrangeiros que o colocava nessa situação dizia que ele era considerado hostil ao regime político republicano e democrático vigente.

César e Aristides de Sousa Mendes, 1933
Foto em: images.impresa.pt/

Com interferência de seu irmão César , encarregado de negócios na Embaixada portuguesa no rio de Janeiro, ajudou à defesa de seu irmão enviando ao Ministério dos Negócios Estrangeiros uma representação assinada por 34 cidadãos portugueses residentes em Curitiba em defesa de Aristides "como protesto contra uma campanha miserável que ali lhe têm movido criaturas sem vislumbre de senso moral". Esta defesa viria a surtir efeito e foi levantada a suspenção das funções diplomátivas de Sousa Mendes.

Neste período acrescentou ao seu nome os apelidos da família " Amaral e Abranches", o fato e ter sido punido pela suas aspirações monárquicas, só serviu para a reafirmação das suas convicções nobiliárquicas. As convicções aristocráticas estavam  também bem presentes no tecto do hall de entrada da sua casa, em Cabanas de Viriato

Aristides de Sousa Mendes em S. Francisco da
California, Cônsul de S. Francisco em 1922.

Esta e outras fotos em: vidaspoupadas.idiplomatico.pt

A 11 de junho de 1921, foi enviado temporariamente para o consulado em Sam Francisco, no estado da Califórnia, Estados Unidos, onde esteve durante dois anos, e mais dois filhos nasceram. A alteração anterior de colocação na situação de disponibilidade teve consequenciais financeiras graves  para Sousa Mendes, nos Estados Unidos teve que contrair empréstimo para alimentar e a alojar a numerosa família, como cônsul na disponibilidade, ele não tinha sequer direito a despesas de instalação.

Aristides de Sousa Mendes com a família em S. Francisco da California,
Cônsul de S. Francisco em 1923.

Esta e outras fotos em: vidaspoupadas.idiplomatico.pt

A 29 de agosto de 1924, é nomeado cônsul em S. Luís do Maranhão, no Brasil, e dirige provisoriamente o consulado de Porto Alegre, também no Brasil, sendo que a 21 de dezembro do mesmo ano passa a dirigir inteiramente os dois consulados. 

A 29 de janeiro de 1926, é obrigado a regressar a Lisboa para prestar serviço na Direcção-Geral dos Assuntos Comerciais e Diplomáticos e a 15 de abril é nomeado secretário da Delegação Portuguesa da Comissão Internacional de Lisboa entre Portugal e Espanha.

Com a revolução militar a 28 de maio de 1926, Sousa Mendes, apoia abertamente o regime ditatorial e a sua carreira começa a melhorar significativamente. Pela confiança que lhe é conferida pela ditadura militar, em 29 de maio de 1927 é nomeado cônsul em Vigo, colabora ativamente com a ditadura do estado novo, numa carta enviada ao Ministério dos Negócios Estrangeiros, datada de 1929, dizendo-se a pessoa apropriada "para vigiar e inutilizar os manejos conspiratórios dos emigrados políticos contra a ditadura" e vangloriando-se de feitos conseguidos, fez "inúmeras diligências junto das autoridades espanholas fornecendo ao nosso governo informações que permitiram liquidar os ditos manejos revolucionários".
Com esta mudança sai de disponibilidade e recupera algum folgo económico, o regime militar identificou nele a capacidade para identificar conspirações politicas contra a ditadura. 

Parece-me também uma boa decisão, nada melhor do que um monarca e nacionalista, para identificar conspirações republicanas contra a ditadura militar, e parece-me que o havia feito com algum prazer pessoal, avaliando as palavras por ele proferidas...


Aristides de Sousa Mendes e mulher Angelina, 1928.
Foto em: www.aristidesdesousamendes.com

A 7 de setembo de 1929, Aristides de Sousa Mendes foi nomeado cônsul-geral em Antuérpia, Bélgica, um posto prestigiante e lucrativo, não obstante foi ainda acreditado no Grão-ducado do Luxemburgo, a sua carreira estava no auge e segundo o próprio, "Foram 9 anos de felicidade passados nesta região da Europa!".

Ainda que o consulado fosse em Antuérpia, decide instalar-se em  Lovaina, o alojamento para  uma família tão numerosa, não era de fato tarefa fácil, já em São Francisco havia passado por uma situação idêntica, com a agravante do custo de vida ser ainda mais elevado. O fato de em Lovaina existir uma Universidade Católica também terá pesado na sua decisão, com o intuito de os filhos mais velhos poderem prosseguirem os estudos.


"Expresso dos Montes Hermínios",c.1920
Viatura de dimensão especial para dar resposta à família.

Com efeito aqui pôde viver a vida familiar de forma descontraída como o não podera antes, os problemas financeiro e de saúde ficaram para trás. Todas as semanas iam passear no pequeno autocarro familiar, de entre os programas mais apreciados pela família estavam as idas ao cinema.
O autocarro familiar que durante a estadia na Bélgica, Aristides pedira ao filho Pedro Nuno para desenhar, acabaria por ganhar forma de facto no transporte familiar, a viatura recebeu o nome de "Expresso dos Montes Hermínios".

O expresso havia de protagonizar também as importantes viagens da família a Cabanas de Viriato, por ocasião das férias, era sempre um acontecimento importante, as crianças reviam os primos e matavam saudades do seu verdadeiro lar. A vida das crianças não era de fato nada fácil, a inconstante estabilidade geográfica afetava não só a sua adaptação, como uma constante luta na criação de laços de amizade. Era importante que elas tivessem uma referencia constante que contrariasse as mudanças a que estavam sujeitas constantemente.


Aristides de Sousa Mendes com a mulher e os filhos, 1029
Cabanas de Viriato, Cargal do Sal, Viseu, Portugal
Esta e outras fotos em: vidaspoupadas.idiplomatico.pt

Em Lovaina, moravam numa casa de dimensões generosas e dispunha de duas criadas dedicadas, principalmente no que respeita aos trabalhos com os numeroso filhos. A casa era no número 178 da Rue de Bruxelles, em frente à Igreja de Saint Jacques. Os sete anos passados em Lovaina foram de uma merecida estabilidade que muito agradou a todos. Os filhos de Aristides puderam durante estes anos fazer amizades e continuar a estudar sem interrupções. Seis deles frequentaram a Universidade de Lovaina, enquanto os outros seis terminaram o ensino primário e secundário. À educação dos filhos pode acrescentar outras atividades, nomeadamente formação musical, arte para a qual alguns tinham especial aptidão, em ocasiões especiais promovidas pela família podiam exibir o seus talentos, recitas e concertos eram organizados com alguma frequência.

Infelizmente nem tudo foi bom, Manuel, o segundo filho mais velho, que tinha acabado de concluir os estudos na Escola Diplomática, faleceu em Junho de 1934, com apenas 21 anos e logo passados 6 meses, morre a pequena Rachel de apenas 17 meses. Apenas a grande fé de Aristides e Angelina lhes permitiu ultrapassar estas rudes provações. 

Todavia, no que diz respeito à vertente profissional, nem tudo corria como o esperado, Sousa Mendes depara-se com algumas situações desagradáveis, situações de deslealdade e intriga, com origem no Palácio das Necessidades e alegada corrupção no seio do Ministério dos Negócios Estrangeiros, desmotivavam-no e o fazia desacreditar do sistema político português. 

Não será de todo descabido considerar que os laços criados aos Países Baixos e a descredibilização do sistema político português, possam ter contribuído para a decisão que o demarcara dos restantes portugueses conferidos com o mesmo poder, e ter ajudado os refugiados na sua fuga pela sobrevivência.

Aristides de Sousa Mendes com a mulher e os filhos, c.1930
Foto extarida em: www.cmjornal.pt

Em 1936, tornou-se decano do corpo diplomático em Antuérpia, cargo que acumulara com o de cônsul durante dois anos sem que num entanto tenha havido o respetivo reconhecimento monetário pelo esforço. Coma chegada da família a Antuérpia, o cônsul começou a ter uma ideia dos problemas vividos pelos judeus na Alemanha, a família aproveitava as férias para viajar pela Bélgica e pelos países vizinhos, que veio a contribuir para uma ter uma noção precoce do que estaria para vir.

Como diplomata em Antuérpia, obteve êxito no seu desempenho, cujo reconhecimento lhe foi dado pela imprensa de língua francesa e flamenga. Na Bélgica recebeu duas condecorações, oficial da Ordem de Leopoldo II e comendador da Ordem da Coroa, ambas atribuídas pelo "rei da borracha" Leopoldo III. 
O prestigio que ganhara permitiu privar com grandes personalidade como o escritor Maurice Maeterlinck, Prémio Nobel da Literatura, e o cientista Albert Einstein, Prémio Nobel da Física.

Aristides de Sousa Mendes, a Família e o Irmão, c.1930
Foto extraida do Blog: bbb.blogs.sapo.pt

Em 1938, Aristides de Sousa Mendes escreve a Salazar, no intuito de obter uma promoção, com base na antiguidade pretendia subir de classe e der transferido para a delegação chinesa ou japonesa, em vez disso, em 1 de agosto, Salazar transferiu-o para Bordéus, em França, um lugar pouco apetecível, nesse sentido Sousa Mendes enviou 2 telegramas a Salazar, pedido para permanecer em Antuérpia, o pedido não viria a ser acatado sendo transferido para Bordéus, o destino de mais de trinta mil refugiados iria mudar com esta decisão.

O cônsul Aristides de Sousa Mendes,1940.

Em meados de 1940, já em plena guerra mundial, em Bordéus e em Baiona, desobedeceu ao Ministério dos Negócios Estrangeiros, atribuindo visto a toda gente que o solicitava, nessa sequência, sofre um processo disciplinar, voltou para Lisboa e em 1941 foi afastado definitivamente do cargo, beneficiário de uma pequena subvenção muito inferior ao salário que usufruíra.

Depois do te terminada a 2.ª Guerra Mundial, Sousa Mendes apresenta à Assembleia Nacional uma reclamação que contestava a decisão do seu afastamento invocando a inconstitucionalidade da Circulara 14, que ele havia violado. Este argumento não foi aceite, depois disso vai viver para Lisboa, onde pretendia exercer advocacia com o intuito de aumentar o seu orçamento familiar, mas a nódoa da sua condenação não permitiu que o pudesse vir a fazer.


Aristides de Sousa Mendes e a esposa Angelina, 1947.

Não bastante a perda de dois dos seus filhos de forma muito prematura, a 25 de julho de 1948, nova tragédia se abate sobre a família, Angelina, sua esposa, faleceu aos 59 anos de idade, de doença natural depois de ter estado internada vários meses. Este casamente havia sido pautado por um companheirismo a altura dos desafios de instabilidade que a sua profissão exigia. Angelina apoiava-o incondicionalmente em todas as suas decisões, mesmo quando essas decisões pudessem ser menos favoráveis do ponto de vista familiar.

Casamento da filha mais velha, Clotilde, Casa do Passal
Foto extraida em: aristidesdesousamendes.com

Estes anos foram muito difíceis, graves dificuldades económicas afretavam a família, neste sentido, vê emigrarem para os Estados Unidos os cinco filhos mais velhos, as oportunidades no país estavam vedadas também aos filhos, visto estarem todos na lista negra por motivos políticos. Em outubro de 1949, Sousa Mendes casou por procuração com a francesa Andrée, de quem tivera uma filha.  Esta relação não foi bem acatada pela família, mas a solidão que vivia, depois da morte de Angelina, pesou na sua decisão.

Aristides de Sousa Mendes, 1950
Foto extraída em: en.wikipedia.org

Sousa Mendes morre a 3 de abril de 1954, no Hospital da Ordem Terceira, na Rua Serpa Pinto, em Lisboa. Em portugal a sua morte passou despercebida, já em Léopoldoville, capital do Congo Belga, um refugiado que ele tinha ajudado lembrou-se do corajoso cônsul e escreveu na necrologia de um jornal: "Un grand ami de la Belgique est mort." A causa do óbito foi uma trombose cerebral agravada por pneumonia. 

Depois da sua morte, sua memória e seus feitos ficaram apenas vivos nos que por ele foram ajudados e dos familiares mais próximos. Pelo contrário os filhos sofreram consequenciais de perseguição a que também o seu pai havia sido sujeito. Todavia os filhos Joana e Sebastião, não conformados com a injustiça que havia caído sobre o destino de seu pai e que insistia em perpetuar a na sua memória, Sebastião escreveu artigos para importantes jornais, mas os mesmos textos viriam a ser rejeitados. Optou por mudar a sua estratégia e em 1951, publica a história  romanceada com o titulo de "Flight trough Hel", a mesma não viria a despertar o interesse desejado do público.

Já o filho João Pedro através de um contacto que tinha no jornal "The San Francisco Examiner" consegue a publicação de um artigo que despertou um certo interesse, Joana aproveitando esse interesse e escreve ao Primeiro Ministro de Israel, Ben Courion, sobre a heróica história do pai, em resposta em 1961, dois anos depois de lhe ter escrito, foi informada que foram plantas 20 árvores, em memória do seu pai, nos terrenos do Yad Museum.

A sua vida inspirou obras literárias como "Injustiça - O Caso Sousa Mendes" de Rui Afonso  e "O Cônsul" de Júlia Nery, ainda que de forma romanceada.

Medalha de Ouro dos Justos do Yad Vashem atribuída postumamente
a Aristides de Sousa Mendes, o único português que a detém, 1966.
A Medalha tem gravada a seguinte citação do Talmude
“Quem salva uma vida é como se salvasse toda a Humanidade”
Esta e outras fotos em: vidaspoupadas.idiplomatico.pt

A imprensa americana continuou a demonstrar interesse na história,e artigos atrás de artigos eram publicados, os artigos acabaram por despertar o interesse da organização Yad Vashem (Memorial Oficial das  Vitimas do Holocausto, em Israel) que depois de investigar, o destinge em 1966 com a mais alta honra, a Medalha de Ouro dos Justos Entre as Nações. A Medalha havia sido entregue a Joana de Sousa Mendes (filha) em 1967, pelo Cônsul-Geral de Israel em Nova Iorque.

Em Portugal, a história do cônsil só viria a ser do conhecimento  publico em 1986 com a publicação de um artigo de António Colaço no "Diário Popular" e no ano seguinte na "A Capital", o grande publico toma conhecimento dos atos heróicos praticados por este "Grande Português".

Em 1986 foi criado o Comité Internacional da Memória de Aristides de Sousa Mendes, e só com a insistência desta, é que em Outubro do mesmo ano, teve lugar a primeira condecoração póstuma de Sousa Mendes em Portugal, como Oficial da Ordem da Liberdade, pelo então Presidente Mário Soares.

Busto de Aristides Sousa Mendes  na Promenade Charles de Gaule 
em Bordéus,  inaugurado em Maio 1994.
Esta e outras fotos em: vidaspoupadas.idiplomatico.pt

A 13 de março de 1988, a Assembleia da República aprova o projeto de Lei, da autoria do deputado Jaime Gama, do Partido Socialista, reabilitando oficialmente Aristides de Sousa Mendes e, em abril, o Diário da República publica o diploma de reintegração póstuma de Aristides de Sousa Mendes na carreira diplomática, com promoção a Embaixador, foi necessário esperar 48 anos depois dos heróicos atos por si praticados e 14 anos depois da queda da ditadura.

Em 1990, Montreal no Canadá, inaugura um parque com o seu nome "Parc Sousa-Mendes"; Endereço: 2591 Avenue de Soissons, Montréal, QC H3S 2K4, Canadá.

Em 1993 é realizado por Terese Olga um documentário "O Cônsul Injustiçado", o mesmo foi exibido na RTP2, no programa Sinais do Tempo. O mesmo é possível de encontrar no youtube, por exemplo. No Deserto de Nehuev, em maio de 1993, é plantada uma floresta de 10.000 árvores à qual foi atribuída o nome de "Floresta Aristides de Sousa Mendes".

Em 1994, foi inaugurada na esplanada Charles de Gaulle em Bordéus o busto de Sousa  Mendes, que vemos na foto anterior, da autoria da escultora Margarida Santos, por essa altura foi tambem colocada uma placa em sua homenagem no prédio em que funcionava o Consulado de Portugal, em 1940.


Selo Europa 95 - Aristides de Sousa Mendes, 1995
CTT/Lisboa, 5/5/1995, Paz e Liberdade,
Comemoração dos 50 anos do fim da II Guerra,
este e outros selos em: www.delcampe.net.

Em 1995 Aristides de Sousa Mendes é condecorado postumamente com a Grande Cruz da Ordem de Cristo, nesse mesmo ano, pela comemoração dos 50 anos após o fim da  Segunda Guerra Mundial, CTT, Correios de Portugal, lançou um selo com a foto de Sousa Mendes.

Em 1998, o Parlamento Europeu homenageia Aristides de Sousa Mendes, atribuindo-lhe uma importante medalha/condecoração. 

Em 1999, no Rio de Janeiro, foi-lhe atribuída a Condecoração da Cidade à memória de Aristides de Sousa Mendes, em Portugal, no mesmo ano, o Presidente da República, Jorge Sampaio, homenageia Aristides de Sousa Mendes, um mês depois, em Cabanas de Viriato, junto ao jazigo onde repousam os seus restos mortais, a associação AVIS promove um Congresso em sua Homenagem, a cerimónia foi presidida pelo Bispo de Viseu, D. António Monteiro.


Praça Aristides de Sousa Mendes em Viena
Foto extraída em: en.wikipedia.org

A parti do ano de 2000, com a oficialização da Fundação Aristides de Sousa Mendes, diversão homenagens e eventos têm tido lugar um pouco por todo mundo, sobretudo muito se tem escrito sobre ele, de que se destacam o Museu Virtual Aristides de Sousa Mendes, Vidas Poupadas/Spared Lives (exposição online do Instituto Diplomático - Arquivo Histórico-Diplomático do Ministério dos Negócios Estrangeiros), Os nove dias de Sousa Mendes (site/documentário da autoria de Inês Faro e Mélanie Pelletier), as páginas web da Fundação Aristides Sousa Mendes, da Sousa Mendes Foundation e do Comité National Français em homagem à Aristides de Sousa Mendes.

Em 2007 foi uma das 100 personalidades a votação para escolha das 10 mais importantes de Portugal, programa organizado pela RTP, no resultado final foi-lhe atribuído um lugar no pódio, atrás de Álvaro Cunhal e de António de Oliveira Salazar, por ironia, este ultimo ficou com o primeiro lugar.

Em 2010, através das ligações que ambos mantém com os familiares das pessoas que receberam vistos por Sousa Mendes, a Fundação Sousa Mendes e a Família de Aristides de Sousa Mendes, formam uma parceria, uma vez que partilham do mesmo interesse em relação à sua memória.


Momento da entrega da Grã-Cruz da Ordem da Liberdade, Presidente da
República ao neto de Aristides de Sousa Mendes, Gerald Tremblay, 2017

Fotografia extraída do site da  Presidência da Republica Portuguesa.

A 3 de abil de 2017, no dia do aniversário da sua morte, Aristides de Sousa Mendes foi homenageado pelo Presidente da Pepública, Marcelo Rebelo de Sousa, com a mais importante distinção portuguesa, a Grã-Cruz da Ordem da Liberdade, tendo o seu neto, Gerald Tremblay de Sousa Mendes recebido as insígnias.


Fronteira da Paz, Memorial aos Refugiados e ao Cônsul Aristides de Sousa Mendes


Armazém Pequeno da Estação de Caminhos de Ferro de Vilar Formoso,
este edifício alberga as funções de Receção do novo Pólo Museológico.
Foto da Câmara Municipal de Almeida

Em abri de 1940 começa oficialmente a II guerra Mundial com a Invasão da Dinamarca pela Alemanha Nazi, já depois da invasão da Polónia em 1939, logo depois segue-se a invasão da Noruega, a Bélgica e a Holanda,  as pessoas fugindo da violência das tropas Alemãs, deslocam-se dos Países Baixos em direção à França.
No inicio de junho de 1940, Paris cai também nas mãos dos Alemães, grande parte da população foge em direcção a Bordéus, a 10 de junho o próprio governo francês é também deslocado para a cidade, Aristides de Sousa Mendes passa vistos indiscriminadamente e a grande velocidade a fim de permitir a entrada em Portugal de Judeus e outras individualidades perseguidas pelo Regime Nazi, que viam em Lisboa a usa única opção de fuga do velho continente.
A principal fronteira terrestre para entrada em Portugal, na época, era Vilar Formoso, começam assim a chegar grandes levas à fronteira portuguesa, sobretudo visados pelo Cônsul de Bordéus.

Estação Ferroviária de Vilar Formoso, c.1979
Bilhete Postal, Portugal Turismo, Supercor,
Este e outros postais em: delcampe.net

A memória dos painéis de azulejo do Posto de Turismo(edifício da estação) de Vilar Formoso, ficou presente na memória dos refugiados como que simbolizando as portas da liberdade ao mesmo tempo que dava as voas vindas aos que chegavam. Desde o inicio da sua fuga até a chegada à fronteira de Portugal, o cenário de destruição que vislumbraram ao atravessar a Espanha, acabada de sair de uma Guerra Civil, contrastava com o que acabavam de ver em Portugal, duas realidades muito diferentes e ao mesmo tempo muito próximas geograficamente.

O Museu Vilar Formoso Fronteira da Paz, Memorial aos Refugiados e ao Cônsul Aristides de Sousa Mendes, celebra o momento da liberdade de milhares de pessoas fugindo ao Regime Nazi na década de quarenta, evidenciando individuante cada uma das histórias de vida dessas pessoas, o tratamento das histórias representadas no Mural é da responsabilidade de Margarida de Magalhães Ramalho(Investigadora do Instituto da História Contemporânea), desenvolveu um notável trabalho na pesquisa, organização e compilação das informações dos refugiados, mantendo contato com alguns deles ao longo dos anos permitindo interceptar outras histórias dadas como perdidas. A busca de informação é contínua, a recolha é feita também pela busca de testemunhos que passam a fronteira na década de quarenta.

Ronald Victor Courtenay Bodley, 1914
oficia do exercito, autor e jornalista.
Foto extraída em: wikimedia.org

"Estava a chover quando atravessamos a fronteira espanhola, mas poucos minutos depois, em Portugal, o sol apareceu com um sorriso de boas-vindas. Não havia naturalmente nenhuma diferença na paisagem, a mais ou menos uma milha de Fuentes de Oñoro, no entanto, quando ocupamos o nosso lugar na longa fila de carros que se estendia desde Espanha até à fronteira portuguesa, na vila de Vilar Formoso, tivemos uma sensação de que um grande peso nos tinha sido tirado das costas"

                                                                                              Ronald Bodley, Flight into Portugal

Inicialmente as chegadas diárias correspondiam a grupos de 20 a 30 pessoas, passando nas duas ultimas semanas de junho de 1940 para as 200 pessoas e logo passa para as 2.000 pessoas, ora a fronteira não tinha capacidade para receber e escoar tanta gente em tão pouco tempo. No final desse mesmo mês, os critérios da entrada na fronteira de Vilar Formoso são alterados por ordem das Autoridades Portuguesas, com o intuito de impedir a entrada de refugiados de forma descontrolada.


Núcleo cronológico do Pólo Museológico/Memorial, apresenta as vivências
das vítimas da ascensão ao poder de Hitler, na Alemanha, em 1933.
Foto da Câmara Municipal de Almeida.

Felizmente hoje sabemos com algum pormenor o que terá acontecido durante aqueles dias intensos pelo olhar atento de quem viveu de perto aquela realidade, em 1939, na sequencial da abertura do Posto de Turismo de Vilar Formoso, pela iniciativa de António Ferro (1895-1956), Promotor do Secretariado da Propaganda Nacional, foi contratado para a gestão do Posto, António Hartwich Nunes (1905-1966), um homem possuidor de uma grande cultura e uma boa formação, que de forma incessante foi registando num diário todos os acontecimentos mais importantes sucedidos naquela vila e em particular na fronteira.
Inicialmente no chamado "Diário das Meias Horas" onde foi registando as chegadas dos expressos, mas sobretudo nas duas fatídicas semanas de junho de 1940, em que entram milhares de pessoas no país. Com base nesses relatos hoje temos uma boa perceção do que foram, de facto, aqueles dias, a partir do dia 22 e 23 chegam em média 2000 pessoas por dia. 


Armazém Grande da Estação de Caminhos de Ferro de Vilar Formoso,
este edifício alberga o Mural com os testemunhos dos refugiados,
 Pólo Museológico. Foto da Câmara Municipal de Almeida

Não se limitou a escrever esse diário, como também elaborou um "álbum de família" das suas fotografias e ainda, no contexto da sua atividade, criou um "Livro de Honra" pedindo às mais ilustres figuras, que atravessavam a fronteira, que se dignasse a nele assentarem a sua humilde passagem. De entre algumas das assinaturas identificadas consta a do fotografo Man Rey, do Arquiduque de Habsburgo e do empresário Edmond de Rothschild.

Man Ray (1890-1976), ilustre fotografo, cineasta e pintor
Foto extraída em: biography.com

Um outro testemunho,  o do Capitão Agostinho Lourenço (1886-1964), que para alem de corroborar estes dados, confirma que a grande maioria das pessoas apresentavam de facto o visto do Cônsul de Bordéus , Aristides de Sousa Mendes.

"Tendo estado em Vilar Formoso durante os últimos dias do mês de junho do corrente ano, a fim de orientar a entrada de refugiados verifiquei que a maioria dos estrangeiros que se apresentavam para entrar em Portugal, traziam os documentos visados pelo nosso Consulado de Bordéus."

                                                              Depoimento do Capitão Agostinho Lourenço (Diretor da PVDE enquanto testemunha de acusação no processo disciplinar a Aristides de Sousa Mendes, 1940).

António de Oliveira Salazar (1889-1970)
estadista e professor português.

Foto extraída em: ocaisdamemoria.com

Oficialmente o Estado não queria refugiados no país, neste sentido António de Oliveira Salazar (1889-1970) apressa-se a elaborar um conjunto de circulares, de entre elas a famosa " Circular de 14 de Novembro de 1939", que envia para os consulados com indicações inequívocas de restrição aos vistos de entrada no país. 
Com efeito, Salazar, na qualidade de Ministro dos Negócios Estrangeiros, com elaboração da circular pretendia diminuir drasticamente a atribuição de vistos e consequentemente a entrada de refugiados no país, no seu ponto numero 2  a circular dizia "Os cônsules de carreira não podem conceder vistos consulares sem prévia consulta ao Ministério  dos Negócios Estrangeiros: aos estrangeiros de nacionalidade indefinida, contestada ou em litígio, aos apátridas, aos portadores de passaportes Nansen e aos russos; (...) e ainda àqueles que apresentem nos seus passaportes a declaração ou qualquer sinal de não poderem regressar livremente ao país de onde provêm;(...) aos judeus expulsos dos países da sua nacionalidade ou de aqueles de onde provêm;"

Página 2 da Circular de 14 de Novembro de 1939
Foto extraida de : vidaspoupadas.idiplomatico.pt

A partir deste momento Aristides destaca-se dos restantes diplomatas, desobedecendo aos conteúdos normativos e continua a visar entradas para o país, consciente das consequências que poderiam advir de tal decisão uma vez que já havia sido advertido duas vezes: em janeiro de 1994 recebe um telegrama do Ministério dos Negócios Estrangeiros dizendo que "a irregularidade cometida ao conceder um visto para Portugal no passaporte de Arnald Wiznitzer e da mulher, sem antes haver pedido para tal efeito, a indispensável autorização deste Ministério". Apesar disso, em março do mesmo ano, visou o passaporte de um médico espanhol, Eduardo Neina Laporte, cujo visto viria a ser recusado pela secretaria, não permitindo o seu desembarque em Lisboa, não só porque o visto lhe havia abusivamente sido concedido mas também porque a PVDE (Polícia de Vigilância e Defesa do Estado) o considerara indesejado para o país. Neste ultimo despacho ficou ainda advertido que, no caso de nova infracção nesta matéria, seria considerada  desobediência e consequente instauro de processo disciplinar.
Posto isto o Cônsul sabe que se continuar a passar vistos não previsto na Circular, receberá sanções disciplinares, mas sabe também que se o não fizer, muitos irão ser detidos e reencaminhados para campos de concentração, quando não executados de imediato.

Segundo o testemunho do seu filho Pedro Nunes Sousa Mendes, por estes dias o cônsul aparece muito abatido com toda a situação e descansou durante 3 dias, sem querer comer, digerindo a grande frustração que o inquietava, de repente e contra a expetativa de todos, com um vigor extraordinário, decide atribuir vistos indiscriminadamente e sem cobra as taxas, deixando que as mesmas sejam cobradas pelos serviços fronteiriços, informando a família, a titulo de desabafo, que ia dar vistos a toda a gente,  com a ajuda dos subordinados e da família, entre os dias 17 e 19, são emitidos milhares de vistos.

Aristides de Sousa Mendes, c1930
Foto extraída de: vidaspoupadas.idiplomatico.pt

“Não consigo dormir, viro-me para a esquerda, viro-me para a direita, ora tenho frio, ora calor, ora me tapo, ora destapo. Vivo em Bordéus e de Lisboa acabo de receber más notícias, proibições. Que horas são? Tenho sede, Angelina dá-me água…
Milhares e milhares de refugiados de guerra acampam nos jardins do Consulado e nas ruas vizinhas. Franceses, belgas, holandeses, checos, austríacos e até alemães. Judeus mas também cristãos. Querem vistos para o meu país, querem vistos para a Vida. Mas de Lisboa acabo de receber más notícias, proibições: com a Presidência do Conselho, Salazar acumula agora a pasta de Ministro dos Negócios Estrangeiros e proíbe que se passem vistos a refugiados de guerra, principalmente a israelitas. Outra vez me desilude o moço… Que faço eu? Acato a ordem do Presidente do Conselho? Impassível, vou então ficar à janela a assistir à matança dos inocentes? Não, não e não! Não sou cúmplice da chacina, vou desobedecer a Salazar, vou passar os vistos e salvar os perseguidos. Tenho de salvar estas pessoas, quantas eu puder. Se estou desobedecendo ordens, prefiro estar com Deus e contra os homens, que com os homens contra Deus."
                                                                             Aristides de Sousa Mendes

Praça Pey-Berland em Bordéus, junho de 1940
Ponto de encontro dos refugiados que partem para Espanha ou sul da França.
Foto extraída em: www.sudouest.fr.

Desobedecendo às ordens alimentava a esperança a milhares de pessoas de conseguirem fugir, é necessário perceber que a Europa ocidental estava a ser tomada pela Alemanha Nazi e que as pessoas iam fugindo em direção ao ocidente, Espanha, acabada de sair de uma guerra civil, na qual havia recebido a ajuda alemã, não se mostrara disponível para acolher refugiados, apenas permitia a sua passagem cujo destino de Portugal, viesse visado no passaporte, desta feita, a única porta disponível para a desejada fuga em direção às Américas,  neste contexto, a atitude do Cônsul Português viria a marcar a diferença para mais de 30.000 refugiados.

Consulado Português em Bordéus, 1940
N.º1, Edifício n.º 14 do Quai Louis XVIII,
Foto extraída de: esas.pt/

A 19 e 20 de junho também Bordéus é bombardeado pelos Nazis, Aristides de Sousa Mendes, Cônsul Geral em Bordéus e com responsabilidade em Touluse e Baiona, desloca-se a esta última, onde se concentram também milhares de  refugiados que fogem das tropas nazis em direção ao sul, também o governo francês é deslocado para a cidade depois da tomada de París. Em Baiona junta-se ao seus subordinados do consulado, o Vice-cônsul Joaquim Ribeiro Faria Macho(1852-1879) o o cônsul Honorário Vieira Braga,  auxiliando-os na concessão de vistos, mas pressionando-os para estes passem também vistos indiscriminadamente a todos que os peçam, contrariando as indicações do Ministério.

Extracto de uma das páginas do registo dos vistos
concedidos por Aristides de Sousa Mendes.

Foto extraída de: esas.pt/

Foi então que o Vice-cônsul Faria Machado se manifestou contra as contra-orientações de Sousa  Mendes, de quem havia recebido ordens, perante esta situação Aristides de Sousa Mendes, avança no sentido de continuar ele própria a passar vistos assim como havia feito em Bordéus. Até então Espanha autorizava ainda vistos de transito entre França e Portugal, embora não permitissem a sua permanecia em solo espanhol.

Escadas interiores do Consulado de Baiona em 1940, 1999.
Foto extraída em. www.sousamendes.org

A noticia espalha-se como rastilho, e os refugiamos dirigem-se para Baiona a fim de conseguirem o tão desejado visto. O numero 8, da Rue du Piloro, em Baiona, estava completamente entupida de refugiados, estimam-se mais de 5.000 pessoas, as grandes multidões que alí acudiam obrigaram a intervenção da polícia para colocar alguma ordem na corrente de pessoas desesperadas. Com o intuito de agilizar à atribuição dos vistos, são encarregues algumas pessoas para proceder ao recolhimento dos passaportes para que os carimbos sejam firmados e os impressões preenchidos, neste procedimento contou com a ajuda da família e de Vieira Braga que após o preenchimento empunhava a sua assinatura.
Depois de algumas horas os passaportes eram trazidos em sacas para a rua e devolvidos ao respetivos donos, um funcionário do consulado chamava pelos nomes das pessoas que tinham o visto e estas apressadamente se aproximavam para o recolher.

Visto do consulado de Bordéus em 19 de Junho de 1940
Foto extraída em: pt.wikipedia.org

Contudo, perante o confronto da chegada de mais refugiados com vistos portugueses, e na impossibilidade de os mandar de volta, mesmo nos casos de refugiados que entravam de forma ilegal no país, não houve registos de expulsões. Com efeito Salazar acaba por deixar passar estas levas de pessoas, no diário de António Hartwich Nunes, num relato de 22 de junho, refere a chegada do Capitão Agostinho Lourenço (Polícia Politica) à fronteira de Vilar Formoso, e que este esteve na noite anterior a jantar com António Salazar e com António Ferro, refere ainda que este ultimo o terá aconselhado a deixar entrar os visados e que Salazar se submeteu a um pesado silencio de aprovação face as palavras proferidas. Nunes, chega mesmo a descrever nas suas notas que Salazar lhe terá ligado afim de saber como estava a decorrer a situação na fronteira, o que Nunes não sabia é que Salazar já estava com toda a atenção para os atos do cônsul em Bordéus.

Num entanto hoje podemos analisar uma dualidade no comportamento de Salazar, como Chefe do Governo Português(1932-1968), optou por "passar pelos pingos da chuva sem se molhar", por um lado a obrigação institucional e a pressão alemã, por outro lado agradar aos países aliados, que se veio a revelar muito útil, principalmente a quando da entrada na guerra dos Estados Unidos da América. O Governo Português levou até ao extremo a sua posição dúbia em relação ao conflito no intuito de conseguir absorver benefícios económicos nas relações que mantinha com ambas as partes, por um lado acumula reservas de ouro, nomeadamente ouro judeu desapropriado, por outro continua a fornecer volfrâmio aos Alemães para a industria de armamento.

Avisado por Faria Machado de que Aristides de Sousa Mendes o mandara infringir as ordens de Lisboa, o Ministério dos Negócios Estrangeiros envia a Baiona, primeiro o cônsul Lopo Simeão, depois o Embaixador em Madrid e homem de inteira confiança de Salazar, Pedro Teotónio Pereira(1902-1972). Quando a 22 de junho Lopo Simeão chega ao Consulado de Baiona, envia um telegrama a Portugal onde descreve como "circunstancias tragicamente anormais e incalculáveis multidões e em situação verdadeiramente desesperada enchendo as ruas nas proximidades do consulado". Ao cair da noite também o Embaixador em Madrid chega a Baiona, veio pela fronteira de Andaia onde se deu conta do numero de refugiados que ali aparece exibindo vistos passados pelo Cônsul de Bordéus, teve de imediato a noção de que a situação tinha de facto  atingido proporções muito grandes ao ponto de estar na eminencia de gerar um conflito com as autoridades espanholas.

Entrada da Ponte de Behobie, em direção de Espanha, junho 1940
Foto extraída em: aristidesdesousamendes.com

Quando Teotónio Pereira chega ao consulado de Baiona, começa logo por restringir a passagem de vistos, aplicando de forma estrita a Circular 14. No dia seguinte Faria Machado, Lopo Simeão e Teotónio Pereira descolam-se a San Sebastián para daí contactem o Ministério dos Negócios Estrangeiros, em caminho encontram Sousa Mendes junto à fronteira franco-espanhola, perante semelhante cenário, o Embaixador começa a equacionar a sanidade deste, que se apresenta aparentemente perturbado, pede a Faria Machado e Lopo Simeães que o acompanhem até Baiona e posteriormente transferido para Bordéus, onde aguardam instruções de Lisboa, em relação ao mesmo.


Pedro Teotónio Pereira (1902-1972)
Ministro (braço direito de Salazar) e Ebbaixador
em Madid e Rio de Janeiro.

Foto extraída em: geni.com

Teotónio Pereira desmultiplica-se em contactos com as autoridades espanholas da fronteira e em Madrid, desresponsabilizando o governo português da acção do seu cônsul,  comunicando a decisão de dar por nulos os vistos atribuídos pelo Cônsul de Bordéus e impedir que os refugiados atravessem a fronteira, terminando assim com a esperança de muitos destes concretizarem o seu plano de fuga. 

Com efeito a partir do dia 24 de junho a assinatura de Aristides de Sousa Mendes não tem qualquer validade junto das fronteiras espanholas, todavia as agências internacionais apontam o dia 23 como o dia de maior afluência junto da fronteira espanhola, estimando que cerca de 4.000 refugiados a tenham atravessado nesse dia, essa noticia viria a ser publicada no New York Times.

Carlos de Almeida Fonseca de Sampaio Garrido
Foto extraída em: vidaspoupadas.idiplomatico.pt

Na sequência deste facto, vários estudos foram levantados apontando no sentido que mais cônsules e embaixadores tenham ajudado e protegido refugiados, assim como visar entradas no país só que em menor escala do que o Cônsul de Bordéus, como foi o caso do Embaixador Carlos Sampaio Garcia(1883-1960), Embaixador de Portugal em Budapeste, 1944, e Alberto Teixeira Branquinho(1902-1973), Encarregado de Negócio Embaixada de Portugal em Budapeste, 1944, ajudado por Jules Guldem(1898-1979), Cônsul Honorário de Portugal em Budapeste, 1944, que já no final da guerra acolheram e salvaram cerca de 1000 na embaixada portuguesa, dando origem a alguns problemas diplomáticos. 

Alberto Carlos de Lis-Teixeira Branquinho, 1942.
Foto extraída em: vidaspoupadas.idiplomatico.pt

Inicia-se o processo disciplinar ao Cônsul de Bordéus pela desobediência a Salazar, com o seu regresso a Portugal a 4 de julho. Quando Aristides de Sousa Mendes chega a Portugal, sabe que milhares de pessoas aquém passou vistos está em território português e nada o deixa mais satisfeito, com sensação de dever cumprido, reconfortado, prepara-se para enfrentar qualquer penalização pelo Estado Português. Só mais tarde saberemos que ao mesmo tempo que recebemos elogios internacionais, pela sua atitude humanitária para com os refugiados,  em Portugal,  é instaurado um processo disciplinar para o punir por tais atitudes de desobediência.
Ainda nem dez dias se passaram depois da sua ordem de regresso a Portugal e já Salazar que acumula a pasta de Ministro dos Negócios Estrangeiros e Presidente do Conselho, assina um despacho ordenando um inquérito ao cônsul por ter usado os seus imperativos de consciência acima dos seus deveres de diplomata, inquérito cujo fim parecia decidido à priori uma vez que já havia enviado uma mensagem ao embaixador Português em Londres "visto em Bordéus foram atribuídos contra indicações expressas do Ministério, cujo cônsul eu já afastei do serviço"


Primeira página Nota de Culpa a Sousa Mendes
Consulte aqui o documento integral.

A 1 de agosto Aristides de Sousa Mendes recebe uma nota de culpa com 15 artigos sendo os principais relacionados com  a concessão de vistos a refugiados pertencentes a nacionalidades para as quais, por determinação no Ministério, estava interdita essa possibilidade, acrescenta ainda a nota que houve a necessidade de consentir a entrada no país, desses refugiados não desejados, em virtude de Espanha não consentir esse retorno. 
O Cônsul de Bordéus era explicitamente acusado de em Baiona ter concedido vistos  a todos o que o solicitavam alegando que era necessário salvar todas essa gente e ainda de ter dado ordem aos Cônsules de  Baiona e Toulouse, dele dependentes para também eles passarem vistos indiscriminadamente, acusado ainda de em Bordéus ter acompanhado com judeus ilustres, que lhe haviam implorado protecção e vistos. Resumindo dizia assim anota de culpa: "a atitude do arguido deu lugar a uma situação desprestigiante para Portugal perante as autoridade espanholas e alemãs de ocupação".

Resposta de Sousa Mendes à Nota de Culpa
consulte aqui o documento integral.

Admitindo ter infringido o dever de obediência, Aristides de Sousa Mendes responde a nota culpa invocando uma razão maior, o imperativo de consciência. "Era realmente meu objetivo salvar toda aquela gente, cuja aflição era indescritível, uns tinham perdido os seus cônjuges, outros não tinham tinham tido noticias dos seus filhos extraviados, alguns  haviam visto sucumbir pessoas queridas entre os escombros dos bombardeamentos, eram numerosos entre os fugitivos os oficiais dos exércitos dos países anteriormente ocupados, austríacos, checos e polacos, os quais seriam fuzilados como rebeldes, os belgas, franceses, ingleses e luxemburgueses seriam submetidos pelo regime ao duros campos de concentração alemães, havia ilustres intelectuais,  artistas, homens do Estado, diplomatas das mais altas categorias, grandes industriais e comerciantes, que teriam a mesma sorte. Quantos suicídios e outros atos de desespero se produziram, quantos atos de loucura que eu próprio fui testemunha. Não podia eu fazer a diferença de nacionalidades, visto obedecer a razões de humanidade, que não distinguir raças nem nacionalidades".

Seguidamente à nota de culpa e resposta , seguem-se os depoimentos das testemunhas, por um lado, a defesa, um dos depoimentos mais relevantes foi de Francisco de Calheiros e Meneses, representante de portugal em Bruxelas, que havia se encontrado com Sousa Mendes e Faria Machado em Baiona, depois de descrever com grande realismo o estado de cansaço dos dois diplomatas, acrescenta, "podem o depoente resistir às suplicar e implorações de tantos desgraçados, apavorados com a aproximação do invasor e o justo medo do campo de concentração, ou ainda pior, do fuzilamento,  se requeria uma coragem moral não era banal, eram milhares de pessoas angustiadas que tinham sido  metralhadas ou bombardeadas  nas suas fugas. É neste ambiente que a figura  do depoente tem que ser vista e julgada a atitude do arguido."

Do lado da acusação, a testemunha mais importante fora Pedro Teotónio Pereira, representante de portugal em Madrid, narra a sua deslocação a Baiona de acordo com o que faria Machado já havia descrito nos telegramas enviados e depois também pessoalmente em Baiona, mais uma vez sublinha a a aparência desalinhada do Cônsul de Bordéus e o comportamento perturbado do seu estado normal, mostrando não ter a mais ligeira noção dos atos cometidos.

Despacho da decisão do processo, 30 de outubro, 1940.
Pode consultar aqui o documento original.

O processo arrasta-se até finais de outubro, enquanto o concelho de disciplina do Ministério decide sobre a validade das acusações e a pena a aplicar no final, instrutor Paulo Brito recomenda a pena de suspensão de vencimento por 130 dias. Sendo que a decisão final caberia a Salazar, que a 30 de outubro “Condeno o cônsul de 1ª classe, Aristides de Sousa Mendes, na pena de um ano de inactividade com direito a metade do vencimento de categoria, devendo em seguida ser aposentado”. A questão da aposentação compulsiva não estava prevista nas instruções do regulamente disciplinar em vigor.

Nesta sequência o Cônsul não podia imaginar que esta decisão era o marco de viragem para um longo calvário que iria enfrentar. Começa logo pelo impacto que viria a ter o drástico corte  salarial no orçamento familiar de Sousa Mendes, sobretudo pela família numerosa que tinha a seu cargo. mesmo assim, cá em portugal continua a auxiliar refugiados recebendo-os em sua casa. Não perdeu ainda a disposição de lutar e pede a um jovem advogado que demande ao Superior Tribunal Administrativo a anulação da sentença de Salazar, infelizmente esse requerimento não surtiu qualquer efeito.Assim, empurrado para inactividade, Aristides de Sousa Mendes, tenta ingressar na carreira de advocacia, mas a recusa por parte do Ministério em fornecer à Ordem dos Advogados, pormenores da condenação no processo de diplomacia, frustram mais uma vez as suas pretensões.

A cozinha económica Israelita, refúgio dos judeus e refugiados.
 Foto de César dos Santos, em vidaspoupadas

A aposentação, essa, nunca se chega a verificar, e Sousa Mendes, vendo reduzido o seu salário para metade, ao fim de trinta anos de carreira, em breve irá enfrentar dificuldades económicas. 
Abandona a casa onde vivia com a família e onde havia acolhido refugiados, em cabanas de Viriato, e instala-se num pequeno apartamento em Lisboa, onde recorre por diversas vezes à Cantina de Assistência Judaica Internacional. A comunidade judaica desdobrou-se em esforços para ajudar a família de Sousa Mendes,  alguns anos mais tarde os dois filhos mais velho ingressam na carreira militar, um em Inglaterra, outro nos Estados Unidos, as suas viagens foram integralmente pagas por judeus. Logo de pois da morte de sua mulher, em agosto de 1948, aos 60 anos, vê mais duas das suas filhas emigrarem para os Estados Unidos e mais uma vez a solidariedade da comunidade Judaica foi crucial, e a história repete-se com mais um filho.

O marinheiro e a enfermeira estavam na Times Square
quando ouviram o anúncio de que o Japão havia se
rendido, colocando fim ao maior conflito da história.
Foto de Alfred Eisenstaedt, revista Life.

Depois da Segunda Guerra terminar, Aristides de Sousa Mendes, volta a tentar a anulação da sentença proferida no seu processo de diplomacia, este novo requerimento acrescentava um argumento novo, relacionado com a inconstitucionalidade da Circular 14, que havia esta na base na sua condenação, alegando que a mesma não poderia ter condicionado a entrada de pessoas no país com base na discriminação religiosa, uma vez que essa medida violava  um dos direitos fundamentais previstos na constituição portuguesa. Acrescenta ainda que não utilizou este argumento no pedido anterior, por não querer interferir com a politica de neutralidade que Salazar defendeu e que de certa forma foi a melhor escolha para o país, mas a  Assembleia Nacional não aceita mais uma vez os seus argumentos.

Cronologia fotográfica de Aristides de Sousa Mendes
Apresentação fotográfica estraída de: triplov.com

Aristides de Sousa Mendes morre a 3 de abril de 1954 no Hospital da Ordem Terceira sem que tenha havido lugar à reparação da ordem que o condenara à miséria. Outras tentativas se seguiram, inclusive algumas partiram já da iniciativa de seus filhos com o intuito de homenagear a memória de seu pai. 

Mesmo após o Regime Salazarista ter caído, só em 1987, há uma primeira homenagem publica a Aristides de Sousa Mendes na Embaixada Portuguesa nos Estados Unidos, na qual o Presidente Mário Suares,  entrega à família a Medalha da Ordem da Liberdade, com que o distinguira no ano anterior.

Em 1988 a Assembleia da República recomenda que Aristides de Sousa Mendes seja reintegrado no Ministério dos Negócios Estrangeiros com o posto de Ministro de 2.º Classe, que se vem a verificar logo em 1989, num entanto a restituição dos valores de que foi privado juntamente com a sua família, nomeadamente a sua aposentação, pelo menos até a sua morte, não viria a ser regularizada.

Crianças refugiadas de passagem por Portugal em 1943.
Revista Século Ilustrado, Abril 1943

A forma como os portugueses acolheram estas pessoas, demonstra claramente o espírito hospitaleiro que nos caracteriza ainda hoje, é necessário enquadrar a situação económica e financeira do país naquela época, a miséria em que viviam sobre tudo nas aldeias, a agricultura de subsistência foi posta à prova uma vez que não podíamos contar com os creiais importados, e as condições gerais do solo não são indicadas para esta cultura. por outro lado as preocupações com conflitos coloniais aumentava.

Grupo de refugiados chegados a Portugal, c1940.
Foto extraída de cascais.pt

Esta solidariedade acaba por se repercutir na generalidade do país que ia disponibilizando acolhimento. A pena pelas pessoas que chegavam em piores condições despertava uma grande generosidade nas pessoas que os acolhiam. Numa primeira fase, a população de Vilar Formoso, segundo as indicações do pároco, foi recebendo as pessoas que iam chegando desvalidas e alimentando-as, grandes panelas eram colocados no largo da estação e porções eram distribuídas, assim como pão e fruta.

Refugiados sendo alimentados em Lisboa, c1940 
Foto de César dos Santos em: vidaspoupadas

"Pãesinhos portugueses redondos e dourados acabados de fazer, ainda que a sair do forno, o melhor pão branco do mundo, como viemos a descobrir, latas de deliciosas e enormes sardinhas e barras de chocolates. As senhoras distribuíam biscoitos, doces e latas de leite condensado às crianças. Enquanto vivermos não nos esquecemos das autoridades portuguesas em Vilar Formoso."
                                                                             Eugene Bagger, For the heathen are wrong.

Paralelamente às crianças que não percebiam muito bem o que acontecia ao seu redor, também os seus pais, cansados de fugir de país em país, completamente esgotados e sem recursos, emocionalmente à beira do precipício, neste sentido as famílias portuguesas de acolhimento fizeram mais uma vez um excelente trabalho, até no apoio emocional que prestaram a estas pessoas, mesmo sabendo que se travam de acolhimento temporários, muitas vezes proporcionando-lhes uma integração profissional, ainda que clandestinamente, mas que contribuiria fortemente para o seu bem estar, pois muitos deles possuíam elevadas competências profissionais e uma grande propensão laboral. Prova do grande reconhecimento pelo auxilio prestado pelos portugueses foi o contato dos refugiados passado décadas com o intuito de formalizar um agradecimento às famílias que lhe prestaram apoio.

Refugiados e Diplomatas homenageados, c.1940
Foto extraida de: http://3.bp.blogspot.com

Ao visitar o Memorial ficará deslumbrado com quantidade de informações, fotos e histórias das pessoas que fugindo da guerra cruzaram esta fronteira  de Vilar Formoso, com efeito o propósito do museu é homenagear a memória dos refugiados mas também a dos heróis que auxiliaram as suas fugas, nomeada mente Aristides de Sousa Mendes.

Representação de algumas das nacionalidades de refugiados salvos.
Foto extraída de: ands.press

Estima-se que existam descendeste de pessoas salvas pelo Cônsul Português em mais de 50 país, o que explica que, hoje, o nome de Aristides de Sousa Mendes seja lembrado um pouco por todo mundo, assim como as homenagens que lhe são prestadas. Para honrar a memória de uma pessoa não é relevante a dimensão do evento mas sim o reconhecimento sincero da dimensão dos seus atos,

De entre as muitas fotos expostas no Mural, poderá identificar muitas caras visadas pelo Cônsul Português, de entre elas:


Paul Van Zeeland (1893-1973), Primeiro Ministro Belga(1935-1937); 



A actriz e cantora Madeleine Lebeau(1923-2016) participou em celebres filmes como "Casablaca" e o filme " 8½ " de Fellini; 



O conhecido fotografo Man Ray(1890-1976); 



Duquesa Carlota de Luxemburgo (1919-1964);



A família Rothschild, uma família judia, com origem em Hamburgo, Alemanha, que estabeleceu uma poderosa dinastia bancária na Europa; 



O famoso pintor Salvador Dalí (1904-1989); 



O escritor e tradutor de português na Alemanha e amigo próximo de Teixeira de Pascoais, Albert Vigoleis Thelen (1903-1989); e

Rabbi Chaim Hersz Kruger, neste caso, Aristides de Sousa Mendes atribuiu visto a 15 de junho de 1940, depois de ter sido expressamente negado pro Salazar.

Sousa Mendes com o rabi Kruger, em 1940.
foto extraída de pt.wikipedia.org.

Aristides de Sousa Mendes havia conhecido o rabino em Bodéus no mês anterior, este ofereceu visto a Kruger e a sua família, mas este rabino polonês que vivia na Bélgica, esteve tentado a recusa-lo num ato de coragem e solidariedade perante os restantes, ato apreciado pelo Cônsul de Borddéus, que insistindo o conseguir convencer. Entraram em portugal em 1940 e embarcaram no navio Nyssa em junho de 1941, sensivelmente um ano depois, com destino a Nova Iorque.


Oskar Schindler (1908-1974)

Os feitos de Oskar Schindler podem ser comparados qualitativamente com os de Aristides Sousa Mendes, este industrial alemão, espião e membro do Partido Nazi, arriscou a sua cabeça quando salvou 1200 judeus durante a guerra, argumentando que estes lhe conferiam mão-de-obra barata nas suas fábricas de esmaltes e munições, mas a verdadeira intenção foi salva-los, outros judeus que não conseguiu empregar foram também ajudados por ele, como membro do partido Nazi, durante um certo tempo forneceu informações importantes para que os judeus conseguissem ir escapando às malhas das tropas alemãs.  

Aristides de Sousa Mendes (1885-1954)

Aristides de Sousa Mendes era um homem de forte convicção religiosa, movido pela sua consciência e solidariedade para com o próximo, passou vistos indiscriminadamente com o intuito de salvar um maior numero de pessoas da "morte certa", um Herói que durante muitos anos foi tratado com grande rancor pelo Estado Português, sobretudo por ter assumido a responsabilidade de uma postura perante uma situação da qual todo o país tinha sido conivente.



Fontes:
Sistemas de Informação para o Património Arquitetonico, João Carvalho, 1997.
Direção Geral do Património Cultural, Rosário Carvalho, 2012.
História do Século XX Década a Década, Volume 5, Obra Coletiva, Plaza Y Janés, 1999;
Grande Decicionário Enciclopédico, Volume X, Obra Coletiva, Clube Internacional do Livro;
"O Consul Desobidiente", Edição Saida de Emergência, 2013, Sónia Louro; em books.google.pt/
Aristides de Sousa Mendes O Dever de Desobediencia, Universidade de Coimbra, Diana Andringa, 2005;
Aristides de Sousa Mendes - O Cônsul Injustiçado; Dcumentário Biográfico; Realização Teresa Olga; Textos Diana Adringa, 1992:
Fundação Sousa Mendes: http://www.fundacaoaristidesdesousamendes.pt
Circular 14 de novembro de 1939: http://vidaspoupadas.idiplomatico.pt/wp/wp-content/uploads/2013/10/VIDASPOUPADAS_ANEXO_1_PT.pdf
Depoimentos: https://ands.press/2017/07/19/aristides-de-sousa-mendes-132-anos/
wikipedia.org;
geni.com;

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