sexta-feira, 14 de junho de 2019

Igreja de Santa Maria da Várzea, Museu Damião de Goes e das Vítimas da Inquisição, Alenquer

Igreja de Santa Maria da Várzea, actural Museu Damião de Goes e das Vítimas da Inquisição, Alenquer, 2014. Fotografia(editada) de J. H. Lourenço, aqui.

A antiga Igreja de Santa Maria da Várzea, também conhecida por Nossa Senhora da Várzea, ou ainda por Nossa Senhora da Purificação localiza-se na antiga freguesia da Triana, em Alenquer, hoje União das freguesias de Santo Estêvão e Triana. Edifício de arquitectura religiosa, renascentista. Igreja de nave única com capela-mor, sacristia e torre sineira, adossada com cobertura piramidal. A sua fachada está orientada para a muralha do Castelo de Alenquer, a escassos metros da Porta da Conceição, a sudoeste a igreja está limitada pela Calçada Damião de Goes.

Vista em grande plano sobre o Vale de Alenquer, com a Igreja da Várzea assinalada com um circulo.
Gravura (R. Chrstino)Revista Ocidente, n.º 214, Anno 7, Volume VII, 21 de dezembro de 1884, Pagina 284.

Alenquer é uma vila do distrito e do patriarcado de Lisboa, sede de concelho e de comarca. Conhecida como a "vila presépio" devido à sua implantação numa encosta revestida de verdura, é distribuída por três núcleos populacionais: a vila alcandorada numa encosta íngreme de um monte verdejante, ao redor do castelo em ruínas; a vila baixa que assenta no sopé da colina; e o Bairro da Triana localizada na margem oposta ao Rio Alenquer, afluente do Tejo.

Brasão de Alenquer
Bilhete Postal, n.º 7, Edição Cultarde, As Cidade e as Vilas da Monarquia, Lisboa, in delcampe.net.

A vila foi conquistada aos mouros em 1148, D. Sancho doou Alenquer às suas filhas, D. Branca, D. Mafalda, D. Sancha e D, Teresa, nela ergueu o monarca um palácio onde, em 1222, se construiu o Convento de S. Francisco, o 1.º Convento Franciscano existente em Portugal. Alenquer recebeu o primeiro foral por D. Sancha, renovado por D. Dinis em 1302 e reformado por D. Manuel I em 1910. A vila é muito rica em monumentos, também alguns ilustres portugueses aqui tiveram berço, como Pêro de Alenquer e Damião de Goes.

Estudo de Roque Gameiro para Estudo de Pintora da Igreja de Santa Maria da Várzea, 1896.

São muito antigas as primeiras referências à Igreja da Várzea, a sua fundação é atribuída à iniciativa de D. Sancha, e que, "em 1203 já havia prior dela que foi juiz apostólico na causa contra o bispo da Guarda, D. Martinho". Pertenciam-lhe, em meados do século XVIII, os lugares da Moita, Porto e parte do de Pancas. Foi depois anexada à de Triana. 

Partindo do pressuposto que a vila foi doada a D. Sancha, decorria o ano de 1212, é plausível afirmar que a construção da igreja é posterior à formação da paróquia. Nas "Memórias Paroquiais de 1758", o Prior da Várzea, João Silveira, indica que "a Igreja, Colegiada e Paroquial de Santa Maria da Várzea desta vila de Alenquer, se não é a primeira em antiguidade entre as cinco da dita vila, é certamente a segunda". Segundo João Pedro Ferro em "Alenquer Medieval", existe "prova indiscutível que a igreja existia em 1239 na carta de venda pela qual a Infanta D. Constança Sanches comprou em Junho daquele ano uma vinha(...)", a sua edificação remonta certamente à primeira metade do século XIII, todavia, a mesma foi alvo de várias intervenções até assumir o aspecto que hoje apresenta.

Gravura da Igreja da Várzea em ruínas, aspecto anterior a 1901, data em que foi reparada.
Revista Ocidente, n.º 834, Anno 25, Volume XXY, 28 de fevereiro de 1902, Pagina 44.

No final do século XV o templo foi destruído por um incendeio, cuja responsabilidade atribuída à comunidade judaica que habitava junto ao postigo de São Tiago e que foram condenados a reedifica-la. Do incendeio havia-se salvado a capela-mor que em meados do século XVI se encontrava em mau estado de conservação sendo depois construída a expensas do cronista Damião de Goes que elegera esta para local de sua sepultura.

Brasão de Damião de Goes e de sua mulher D. Joanna van Hargen. Lápide na parede da igreja da Várzea . Revista Ocidente, n.º 834, Anno 25, Volume XXY, 28 de fevereiro de 1902, Pagina 44.

Para além do financiamento das obras na capela-mor, o humanista ofereceu ainda à igreja de Várzea, um pontifical de damasco, três frontais de altar, uma imagem de vulto do "Ecce Homo", uma lâmpada de latão para alumiar esta imagem e um retábulo encomendado a Quentin Metsys, um quadro de Jeronymo Bosch intitulado "A coroação de Nosso Senhor Jesus Cristo", obras que se supõe terem sido saqueadas pelos franceses aquando das Invasões. Anos mais tarde, Damião de Goes doa à igreja portas de bordos para a porta principal.

Epitáfio de Damião de Goes. Lápide na parede da igreja da Várzea.
Revista Ocidente, n.º 834, Anno 25, Volume XXY, 28 de fevereiro de 1902, Pagina 44.

Depois de ficar órfão, Damião de Goes foi para a corte servir como moço de câmara de D. Manuel I, ao longo de vários anos foi-se instruindo aproveitando os recursos da corte, contactou com Cataldo Sículo, que terá influenciado a sua propensão para o estudo do latim e dos clássicos greco-latinos, e conheceu as principais personalidades da política e cultura portuguesas do tempo. Anos mais tarde já no reinado de D. João III, pelas sua demonstrada capacidade intelectual e domínio do Latim, é enviado para a Europa em funções diplomáticas ao serviço do Reino, onde completa a sua formação e conhece as mais altas personalidade desse tempo como Carlos V. 

Damião de Goes (Alenquer, 2 de fevereiro de 1502 — Alenquer,30 de janeiro de 1574), historiador e humanista, epistológrafo, viajante, diplomata e alto funcionário régio, foi figura ímpar e uma das personalidades mais relevantes do Renascimento em Portugal. De cultura enciclopédica e dotado de um dos espíritos mais abertos e críticos da sua época, pode ser considerado como um verdadeiro traço de união entre Portugal e a Europa culta do século XVI.
Revista Ocidente, n.º 32, Anno 2, Volume II, 15 de abril de 1879, Pagina 64.

As suas obras humanistas e historiográficas tiveram boa receptividade entre a comunidade europeia, contudo, as sua visão humanista e, em particular, os seus contactos com reformadores e intelectuais considerados heréticos, levantaram profunda suspeição junto do clero português, que não aceitou os seus escritos. Em 1571 Damião de Goes cai nas garras do Santo Ofício (Inquisição). Sem a protecção do cardeal-regente, foi preso, sujeito a processo e depois, em 1572, foi transferido para o Mosteiro da Batalha. Abandonado pela sua família, apareceu morto, com suspeitas de assassinato, na sua casa de Alenquer, em 30 de Janeiro de 1574, sendo enterrado na igreja de Santa Maria da Várzea, da mesma vila, que mandara restaurar em 1560.

Fachada lateral da Igreja da Várzea, 2013
Fotografia partilhada por Carlos Marques, 2013

Com o terramoto de 1755 a igreja sofreu alguns danos estruturais, apresentava um "ar desolado" entrando rapidamente em processo de ruína, em 1895, a Junta da Paróquia da Freguesia de Triana dirige representação ao Patriarca de Lisboa, pedindo para que seja restaurada a Igreja, o pedido é prontamente aceite e o projecto de restauro, pedido ao arquitecto Victor Bastos, é aprovado. Contudo em meados do século XIX, a igreja ainda funcionava, possuía então cinco altares, no principal venera-se Nossa Senhora da Purificação que é orago da igreja, e nos colaterais Santo António, S. Braz, Santo André e Ecce Homo, imagem dada pelo ilustre cronista Damião de Goes.

Ruína do interior da Igreja da Várzea, s/d
Foto de autor não identificado, reproduzida do SIPA.

O estado de ruína a que a Igreja chegou, em 1897 foi noticiado na comunicação local, fruto da preocupação com o local, no sentido de dar andamento ao projecto de Victor Bastos, foram efectuados alguns trabalhos arqueológicos da responsabilidade do arqueólogo Joaquim de Vasconcelos que procede ao levantamento de parte dos degraus da capela-mor, deixou a descoberto a lápide da sepultura de Damião de Goes. Ainda no mesmo ano, 1897, as imagens existentes na Igreja da Várzea são transferidas para a Igreja de Triana para dar inicio aos trabalhos de reconstrução da igreja, sob a direcção de Adolfo de Carvalho. 

Igreja de Santa Maria da Várzea, c.1901
Fotografia de uma obra de Ribeiro Cristino, reproduzida do blog AL Ain Keir

Já no inicio do século XX, o Estado terá concedido a quantia de 7.000$00 para obras de reparação do edifício, pelo que foi demolido e reedificado em 1901, restando apenas as paredes, a cobertura e a torre sineira, a igreja foi totalmente construída e ampliada, sem obedecer à traça primitiva, por iniciativa do alenquerense Moisés do Carmo e sob o patrocínio da Rainha D. Amélia. Este processo parece ter sido lento e moroso, mas, certamente, terá devolvido o templo ao culto.

Tampa tumular de Damião de Goes e de sua mulher, Joanna van Hargen, Igreja de São Pedro
Fotografia reproduzida de publicação de Fernando Damil, 2016.

Em 1940 a igreja é fechada e entra novamente em decadência, o que restava da igreja foi aproveitado na construção da capela do lado da Epístola da Igreja de São Pedro(Classificada Monumento Nacional desde 1019), também os restos mortais de Damião de Goes e esposa são transladado para esta Igreja, por ordem do então ministro das obras públicas Eng. Duarte Pacheco. Os trabalhos foram dirigidos pessoalmente por Hipólito Cabaço, por encomenda da DGEMN e do seu então director, o arquitecto Baltazar da Silva Castro.

Igreja de Santa Maria da Várzea, s/d
Foto de autor não identificado, reproduzida do SIPA.

Já no inicio do século XXI é elaborado novo estudo para a beneficiação e recuperação da igreja e recinto envolvente, em 2002 a Igreja deixa de ser propriedade da Igreja Paroquial de Nossa

Senhora da Assunção de Alenquer (Diocese de Lisboa), passando para a posse da Câmara Municipal de Alenquer, por esta altura, novos projectos divergentes do orago se começam a desenhar.

Ruína do interior da Igreja da Várzea, s/d
Foto de autor não identificado, reproduzida do SIPA.

Com a dessacralização do edifício, a Câmara Municipal, considerando a riqueza histórica e simbólica que o mesmo representava para a comunidade, decide criar uma dupla homenagem; aos judeus vitimas de perseguição e responsabilizados, sem fundamentação objectiva, pelo incendeio da igreja e obrigados a pagar a sua reconstrução; e ao benfeitor da vila Damião de Goes, perseguido pela inquisição, devido ás suas obras incompreendidas.

Obras de reabilitação do telhado da Igreja da Várzea, 2001
Foto de autor não identificado, reproduzida do SIPA.

A primeira medida foi proporcionada pela intervenção do antigo IPPAR que lhe conferiu um novo telhado, com o intuito de travar a evoluída degradação das paredes, provocada por intempéries, às quais o edifício estava vulnerável. A intervenção no seu interior, havia sido orçamentada para 2015, e que se viria a verificar. Em 2013 a antiga Igreja de Santa Maria da Várzea era ainda uma ruína, num bairro emblemático da vila de Alenquer, um monumento sombrio e silencioso.

Obras de reabilitação da Igreja de Santa Maria da Várzea, 2016
Fotografia reproduzida do Jornal Valor Local, aqui.

Com efeito as obras de reabilitação arrancaram em agosto de 2013, sequência da aprovação de um projecto submetido no inicio deste mesmo ano da candidatura à Rede de Judiarias. Os fundos para a recuperação deste património provêm simultaneamente de uma candidatura ao QREN, e de um protocolo de cooperação do Governo da Noruega, o EEA Grants. A Igreja esta inserida em pleno bairro medieval da Judiaria, que na sequência do incendeio, foram expulsos da vila, É nesse contexto que surge a ligação à Rede de Judiarias, que por sua vez tem uma parceria com o programa EEA Grants.

Convite para a apresentação do projecto do Museu Damião de Góis e das Vitimas da Inquisição.
Fotografia reproduzida da página Redes Judiarias Portugal.

Em Novembro de 2014 foi dado a conhecer à população o conteúdo do projecto a ser desenvolvido nas instalações da antiga Igreja de Santa Maria da Várzea, a cerimónia decorreu no salão nobre dos paços do concelho, em Alenquer. A apresentação do projecto contou com a presença do senhor Embaixador da Noruega, projecto esse generosamente financiado pelos noruegueses, após ter sido um dos eleitos entre quantos foram propostos, para o efeito, pelos municípios portugueses que fazem parte da "Rede das Judiarias".

       
Placas toponímicas que perpetuam a memória da presença judia nos arrabaldes do Castelo de Alenquer, 2013. Fotografias reproduzidas do blog Questom Judaica, aqui.

Numa entrevida dada em 2013 por Pedro Folgado, então presidente da Câmara de Alenquer, explicou que “A comunidade judaica teve uma grande importância na Alenquer medieval, apesar de restarem poucos indícios disso. Foi por isso que achámos que fazia todo o sentido recuperar essa ligação à comunidade judaica, prestando homenagem de forma mais alargada a todas as vitimas da inquisição, incluindo o próprio Damião de Goes”.

Obras de reabilitação da Igreja de Santa Maria da Várzea, 2014
Fotografia reproduzida da página Redes Judiarias Portugal.

Enquanto o espaço interior e exterior era recuperado, equipas de arqueólogos levantavam ossadas ali existentes, uma vez que , outrora, aquele local serviu de sepultura, uma prática medieval comum, nos templos religiosos medievais. Foi também encontrada uma pedra tumular e uma pia baptismal que interferiram com o projecto original no sentido de preservar aqueles registos históricos.

Obras de reabilitação da Igreja de Santa Maria da Várzea, 2016
Fotografia reproduzida da página Município de Alenquer.

As obras de recuperação do edifício foram concluídas no inicio de 2017 e o projecto Museu Damião de Goes e das Vitimas da Inquisição viria a ser inaugurado ainda neste mesmo ano.
A nave central da Igreja foi adaptada e o espaço dedicado às vitimas da Inquisição, e a capela-mor ao humanista Damião de Goes, foi da responsabilidade deste a recuperação da capela-mor no século XVI, e foi da responsabilidade dos judeus a recuperação do corpo da igreja após o incendeio, pelo que a distribuição dos espaços que faz todo sentido.

Cartaz informativo da Inauguração do Museu Damião de Goes e das Vitimas da Inquisição, 2017.
Fotografia reproduzida da página Município de Alenquer.

A inauguração do único museu que prestará homenagem às Vítimas da Inquisição, em Portugal, foi inaugurado a 20 de maio de 2017, um marco histórico para o país. Alenquer moveu-se em esforços no sentido de corresponder às expectativas de tal desafio, reunindo o máximo de informação possível, para tal contou com o apoio da comunidade judaica em Portugal. Também a casa museu em honra de Damião de Goes elevou as expectativa entre directores de museus nacionais.

Antiga igreja da Várzea, actual Museu Damião de Góis e das Vítimas da Inquisição, Alenquer, 2017.
Fotografia reproduzida da página Município de Alenquer.

Depois de instalado em 2017, o novo Museu Damião de Goes e das Vítimas da Inquisição, conta já com milhares de visitantes, um claro sinal de sucesso do Município de Alenquer na sua aposta no património e na cultura.

Capela-mor da antiga igreja da Várzea, actual Museu Damião de Goes e das Vitimas da Inquisição em Alenquer, 2019. Fotografia reproduzida da página Município de Alenquer.

O projecto de arquitectura implementado foi da autoria dos arquitectos Henrique Marques e Rui Dinis. A sua intervenção pretendeu criar uma estrutura expositiva no interior de antiga igreja, agora esvaziada dessa mesma função, com uma identidade muito própria, marcada pela geometria dos seus tectos abobadados e pela textura das suas paredes de tijolo, desnudas. O projecto pretendeu valorizar as características pré-existentes do espaço, afastando a sua intervenção das paredes, procurando uma posição central no espaço e assumindo uma geometria que é familiar ao edifício.

Nave central da antiga igreja da Várzea, actual Museu Damião de Goes e das Vitimas da Inquisição em Alenquer, 2019. Fotografia reproduzida da página Município de Alenquer.

Na nave central foi desenvolvido um núcleo de expositores relacionado com as vitimas da inquisição, que se assemelham a portais virtuais, como que transportando para aquela realidade, a realidade das histórias. Todo o meio envolvente assume uma composição minimalista que canalizam toda a atenção para o interior do núcleo. Também a cor negra assumida nas estruturas dos expositivos, pretende destacar-se da estrutura previamente existente, sem intenção de se sobrepor à mesma.


Capa da programação da 517.º aniversário do Nascimento de Damião de Goes no Museu Damião de Goes e das Vitimas da Inquisição em Alenquer, 2019. Fotografia reproduzida da página Município de Alenquer.

A 2 de ferevreiro de 2019, o Museu Damião de Goes e das Vitimas da Inquisição em Alenquer, iniciou as comemorações dos 517 anos do nascimento do humanista alenquerense com um conjunto de iniciativas que se prolongaram ao longo do mês de fevereiro.
De entre os eventos destacaram-se uma conferência, apresentação de um documentário, exposição de fotografia, recital de música sefardita e jantares, foram ainda organizadas algumas iniciativas especificamente dirigidas para às escolas, adaptado a diversos níveis de ensino.

Fontes:
"Igreja de Santa Maria da Várzea", Sistemas de Informação Para o Património Arquitectónico, ultima actualização por Seabra Gomes, 2005;
"Museu Damião de Góis e as Vitimas da Inquisição", spaceworkers, 2017;
Revista Ocidente, n.º 214, Anno 7, Volume VII, 21 de dezembro de 1884;
Revista Ocidente, n.º 834, Anno 25, Volume XXY, 28 de fevereiro de 1902;

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