quinta-feira, 2 de maio de 2019

Casa dos Bicos, Casa dos Diamantes ou das Portas do Mar, como nunca viu...

Primitiva fachada posterior da Casa dos Bicos, virá a tornar-se a fachada principal, (1890-1945).
Fotografia de José Artur Leitão Bárcia, In Arquivo Municipal de Lisboa. 

A Casa dos Bicos sito no bairro escuro de Alfama, antiga Judiaria Grande, Nova Vila de Gibraltar Cristã de Lisboa, a sua fachada principal, destruída irremediavelmente pelo terramoto de 1755, à nascente, é contornada pela Rua Afonso Albuquerque e a fachada posterior, hoje a fachada principal, a poente, é limitada pela Rua dos Bacalhoeiros.

Primitiva fachada principal da Casa dos Bicos, viria a tornar-se a fachada posterior, 1922
Fotografia de autor não identificado, In SIPA.

Mandada construir em 1523 por Brás de Albuquerque perto da Ribeira Velha e da Alfândega, nuns terrenos e casebres que haviam pertencido ao Vice-rei da Índia, Afonso de Albuquerque, seu pai, que os havia herdado de João Gonçalves de Gomide, seu avô, ou até talvez de Gonçalo Lourenço de Gomide, seu visava, primeiro senhor de Vila Verde dos Francos. A nova construção, um edifício inspirado nos palácios "dei Diamanti" de Ferrara, "de los Picos" de Segóvia e Bevilacqua de Bolonha, mas sobretudo ao gosto Renascentista Italiano, cuja autoria da obra alguns olisipógrafos atribuem ao arquitecto régio Francisco de Arruda. Naquela época era capricho das classes abastadas construir casas para sua habitação na Ribeira, no antigo bairro da Judiaria, de grande tráfego das frotas mercantis e concorrência de estrangeiros galeões de todos os reinos do mundo.

Planta topográfica da zona em que se encontra implantada a Casa dos Bicos,
tal como se apresentava antes do Terramoto de 1755. 

Depois de obras que D. Manuel I manda fazer na velha doca da cidade, esta passa, a partir do século XVI, a ser conhecida como Ribeira Velha ou Praça da Ribeira Velha, faixa que se estendia entre o rio e a muralha moura. A fachada norte da praça já se apresentava então ocupada por um grande número de palácios e casas nobres construídas de encontro ou sobre a muralha velha, cujas ruínas foram desaparecendo, muitas vezes incorporadas nas novas edificações, desde os finais do século XV e no decurso do século XVI quando se torna moda construir na Ribeira, apenas partes simbólicas da muralha, como torres ou portas, foram poupadas.

Casa dos Bicos, fachada voltada para a Rua dos Bacalhoeiros (1955-1970)
Foto de Pastor, Artur. (1922-1999), engenheiro e fotógrafo, in AML. 

Há uma mudança de mentalidades sobretudo influenciada pelos descobrimentos portugueses, antes encerrado dentro das altas muralhas o burgo lisboeta alinhava-se conservado até os finais do século XV, de costas voltadas para o rio, convergindo para o Castelo e a Sé. Com a transferência dos Paços Reais para junto da Ribeira das Naus em 1506 e a edificação da Misericórdia, no exterior da muralha, vão consagrar a Ribeira de Lisboa como lugar privilegiado onde nobres e burgueses mandam construir as suas residências, esta moda havia de se manter até ao século XVII.

Panorâmica tirada do Tejo sobe a Rivera Velha( Casa dos Bicos a esquerda) (1955-1970)
Foto de Pastor, Artur. (1922-1999), engenheiro e fotógrafo, in AML. 

Foi neste contexto histórico e urbanístico que foram construído sobre a "Cerca Moura" as residenciais de nobres e burgueses ilustres como o desembargador Vaz da Veiga, os palácios dos Correias, Senhores de Belas, dos Távoras, dos Noronhas, Condes de Linhares e depois, Condes de Coculim, dos Mascarenhas, Condes de Gouveia, dos Condes de Portalegre,entre outros que surge também a extravagante Casa dos Bicos, destacando-se sobretudo pela sua singular arquitetura.

Busto de Brás Albuquerque, que se encontra na Quinta da Bacalhoa 
em Azeitão, foto na Revista Mensal de Lisboa, 1987. 

Dom (Afonso) Brás de Albuquerque nasceu em 1500 na quinta do Paraíso, Vila de Alhandra, filho de Afonso de Albuquerque com uma escrava branca(mourisca) de nome Joanna Vicente, legitimado por seu pai em 1506 antes deste partir para a Índia como Governador do Estado Português. Afonso Albuquerque morre em Goa a 1515 mas antes envia uma carta ao Rei D. Manuel I pedindo que este dê proteção e educação ao seu filho. D. Manuel atende ao pedido do amigo e mande que este seja educado pelos padres de Santo Elói, adquirindo uma esmerada cultura humanista. 

Pintura "Quinhentos anos de Afonso Albuquerque",2015. Homenagem ao domínio português no
oriente, destaque para o retrato de Afonso Albuquerque (1453-1515).
Painel da Sala de Audiências do Tribunal de Vila Franca de Xira, óleo de Jaime Martins Barata. 

Efetivamente D. Manuel I acabou por reparar no filho a injustiça que fizera com seu pai Afonso de Albuquerque, o conquistador de Goa, Malaca e Ormuz, ao negar-lhe o ambicionado título de Duque de Goa. Não só tomou conta da sua educação como o mandou crismar com o nome de "Afonso de Albuquerque" a titulo de homenagem a seu pai. Casou-o com D. Maria de Noronha, filha do Conde de Linhares, com a qual teve uma filha, favorecendo-os com um generoso dote acrescido dos valores que estavam pendentes para com os carregamentos de mercadorias efetuados pelo seu pai, na Índia.

Vista do Jardim e Palácio da Quinta da Bacalhoa, 1952
Bilhete Portal n.º 22 da Vila Fresca de Azeitão, Colecção LOTY. 

Nas Cortes Portuguesas, em 1521 integra a comitiva da infanta D. Beatriz que se desloca a Itália para casar com Carlos III de Saboia. Em Itália, Brás de Albuquerque ficou verdadeiramente impressionado com a arquitectura renascentista e na sua volta manda construir a Casa dos Bicos e poucos anos depois, em 1528, compra a Quinta dos Prazeres e introduz várias alterações, de entre ela um palácio e altera o nome para Quinta da Bacalhoa. Estes dois edifícios são hoje considerados os melhores exemplares da arquitetura Renascentista de propriedade privada em Portugal. 

Painel de azulejos representando a Ribeira Velha, Princípios do Século XVIII
Podemos observar a fachada da Casa dos Bicos com grande pormenor, antes do terramoto.
Imagem: Museu da Cidade de Lisboa 

A Casa dos Bicos é um exemplar da arquitetura renascentista da Lisboa manuelina, composta originalmente por quatro andares e duas fachadas, sendo a fachada voltada a sul integralmente revestida de pedras lapidas em forma de ponta de diamante, ou "bicos", de eleito estético duvidoso, mas, sem dúvida, conferindo-lhe uma singularidade que certamente não deixou objetivado por Brás de Albuquerque, a par do que conseguiu também com a Quinta do Paraíso em Azeitão, popularizando-a.

Os pisos inferior destinados a loja e sobreloja, o piso intermédio correspondia ao andar nobre e o piso superior destinado a habitação. 

Casa dos Bicos, fachada voltada para a Rua dos Bacalhoeiros (1955-1970)
Foto de Pastor, Artur. (1922-1999), engenheiro e fotógrafo, in AML. 

Nesta fachada, ao nível do rés-do-Chão, abrem-se duas portas de arco polilobado e contracurvado de origem suevas, resultantes da construção original. As outras quatro portas que o edifício apresenta actualmente devem ter sido abertas em época posterior, três delas para servirem as lojas de bebidas e armazéns de bacalhau que ali se foram estabelecendo, e a quarta, de proporções menores, deve ter sido aberta, quando se tomou necessário restabelecer a passagem pública, pois é esta a entrada que se correspondia com o portão principal do lado da Rua Afonso de Albuquerque, cujo acesso era assegurado por escadinhas.

A sobreloja, separada do piso inferior por um saliente cordão de silharia, apresenta um vão de janelas de dimensões variadas diferentes. dispostas assimétricamente que aparecem já nas representações mais antigas deste edifico. 

Fachada principal da Casa dos Bicos, com o aspeto atual revivalista, 1983.
Fotografia de Pastor, Artur (1922-1999), In AML. 

Nos dois andares superiores, correspondentes aos pisos nobres do edifício, alem das janelas com arcos polilobados, assimétricamente distribuídas, grupos de janelas geminadas, e uma galeria com três arcos. à altura do penúltimo andar, pormenor arquitectónico frequente nas residências nobres de Lisboa dos finais da Idade Média. As características gótico-manuelinas são bastante evidenciadas nos elementos distribuídos nas duas fachadas do edifício, construções suevas que D. Manuel I reintroduz na arquitectura, aproveitando a influencia mudéjar no país.

Primitiva fachada principal da Casa dos Bicos, viria a tornar-se a fachada posterior, 1940
Fotografia de Eduardo Portugal, Arquivo Municipal de Lisboa. 

Da fachada que o edifico ostentava antes do terramoto, restou uma base de uma coluna manuelina de uma porta ou janela que se conservou durante muitos anos junto da ombreira da porta principal voltada á Rua Afonso de Albuquerque: Pelo desnível correspondente a um piso entre a fachada dos bicos e esta fachada, este piso térreo corresponde à sobreloja da fachada dos bicos.

Pormenor da Perspectiva de Lisboa na segunda metade do séc. XVI, mostrando a topografia do
local onde se encontra implantada a Casa dos Bicos antes do Terramolo de 1755.
“Olisippo. Lisabona”. Anónimo. (2.ª metade do séc. XVI), in Civitates Orbis Terrarum, 
Volume 5, George Braunio, 1593. 

Num mapa de Portugal publicado por João Baptista de Castro em 1763, relativo a período anterior ao terramoto, vem mencionada entre as ruas da freguesia da Sé, a Rua do Afonso Albuquerque e que para esta rua tem porta o Armazém da Casa do Bicos, onde é possível observar as ombreiras lavradas no mesmo estilo das lavradas que ficam voltadas para a Rua dos Bacalhoeiros. Estas ombreiras do portal principal, ao estilo manuelino, voltado à Rua Afonso de Albuquerque, podarão datar também da mesma ou até anterior. 

Mapa de Portugal Antigo e Moderno, Padre João Baptista de Castro, 
Tomo Terceiro, Parte V, 1763, in BNP.

A Casa dos Bicos tem uma notoriedade tal que é utilizada como referencia e orientação da localização geográfica do lugar, um ponto de referencia incontornável. Na verdade a Casa dos Bicos. desde a sua reedificação quinhentista. não mais deixou de ser ponto de referência importante em todas as panorâmicas de Lisboa, tornando-se numa das grandes curiosidades da cidade, citada por nacionais e estrangeiros, que pela sua popularidade deu origem a uma expressão "ora não se perca a Casa dos Bicos" , utilizada quando se pretende minimizar a perda de alguma coisa, o que demonstra a Importância que lhe era atribuída no contexto citadino.

A Rua Afonso de Albuquerque, por se encontrar originalmente dentro das velhas muralhas, existia já há muitos anos, por volta de 1554, a rua era denominada por Rua dos Arcos, entre 1661 e 1780, foi denominada por Rua da Casa dos Bicos, Rua das Canastras e Rua do Albuquerque, e rua do Almargem até 1882, quando passa à denominação atual, Afonso de Albuquerque.

Movimento de carroça na rua em frente à Casa dos Bicos, c.1959
Fotografia de Fernandes, Salvador de Almeida, Arquivo Municipal de Lisboa. 

Todavia, apesar da traça quinhentista se atribuída à iniciativa de Brás Albuquerque, a casa foi objeto de estudo por alguns olisipógrafos(designação dada ao estudo das temáticas culturais, históricas, sociais e económicas que versam sobre a cidade de Lisboa), que não descartam a possibilidade de esta ter resultado de uma ampliação de anteriores casas da família ai já existentes, situadas no inteiro e adossadas à muralha e que o herdeiro se tenha limitado a enobrecer com novos andares e imponentes fachadas, e que a construção exterior à muralha, voltada para a Ribeira Velha, tenha essa, sido de raiz por volta da data já referida, primeiro quartel do século XVI.

Panorâmica sobre o Campo das Cebolas e Sé de Lisboa, 1969
Fotografia de Serôdio, Armando Maia. (1907-1978), AML 

Também num documento de 1508, publicado por Luís Pastor de Macedo, relativo a um aforamento de D. Manuel a Pedro Vaz de Veiga no qual se podia ler à cerca de um chão que "Vereadores e misteres avemos por bem que aforeis a Pedro Vaz da Veiga hum chão que esta ao longo das suas cazas da porta do Mar da parte da praya que he de largo outro tanto como sahlr o canto de outro chão do Afonso de Albuquerque que com elle parto, notificamo vo lo asim nos praz per lhe fazer nisso mercê feita em Lisboa a vinte e nove dias de Mayo Selvestre Nunes o fez de mil e quinhentos e oito e este pasa per nosa chancelaria da Camara, o qual aforamento Sera por aquele foto vos bem pareceo". (Prazos - Freguesia da Sé, pasta 17/32, Arquivo Histórico Municipal). Deste aforamento podemos concluir que não só já existia uma construção anterior à Casa dos Bicos como também já pertencia a Afonso Albuquerque 


Armas de (Afonso) Brás de Albuquerque, (Dom.)
Eduardo Cardoso Mascarenhas de Lemos, Geni, 2015

Numa breve referencia desta casa no "Livro da Armaria Universal", manuscrito da Biblioteca Pública de Lisboa, é descrito na fachada principal um Brasão com as coroas e armas dos Albuquerques e por baixo em letras do século XVII pode ler-se "Assim estão nas suas notaveis casas dos Diamantes da Ribeira de Lisboa" . Deste brasão foi recupera do um fragmento durante as escavações de 1981 a 1983. Dos registos mais antigos sobre o apelido Albuquerque, consta uma copla heráldica feita pelo Bispo de Malaca, D. João Ribeiro Gajo com a seguinte descrição:

"As cinco flores de liz
Com quinas em quarteirão,
Os Albuquerques trarão,
Os que del-rei D. Diniz
Trazem sua geração,
E por tocar este estado
Bem merece ser louvado
Sangue que é com tal mistura,
Por tão honrada natura,
Digno de ser respeitado."

Frontispício da 1.ª edição dos "Comentários de Afonso de 
Albuquerque", por Afonso Brás de Albuquerque, Lisboa, 1557. 

Depois das obras feitas na casa e na quinta, Brás de Albuquerque não voltou ao serviço militar, terá dedicado o seu tempo a escrever a obra "Comentários do Grande Afonso de Albuquerque" cuja primeira edição sai em 1557, baseado em cartas que se Afonso de Albuquerque trocara com D. Manuel I, quando este permanecia na Índia, O livro dá-nos uma perspectiva fidedigna e pormenorizada da sociedade portuguesa na Índia. Em 1576 publica uma segunda edição e entra para o Senado de Lisboa do qual veio a ser Presidente

Pormenor da fachada principal da Casa dos Bicos, 1983.
Fotografia de Pastor, Artur (1922-1999), In AML. 

Quando Duque de Alva (Fernando Álvarez de Toledo y Pimentel) entrou em Lisboa, em 1580, Afonso de Albuquerque pede a exoneração da presidência do senado alegando problemas de saúde, como outras figuras da primeira nobreza tomou o partido do Filipe II de Espanha. Acaba por falecera 6 de maio de 1581 ao que tudo indica na Casa dos Bicos e é enterrado por determinação testamentaria do próprio, na Igreja de São Simão em Azeitão que tinha mandado construir para panteão da sua faminta.

Porta manuelina da Casa dos Bicos, c.1940
Fotografia de Branco, António Castelo, AML 

Depois da morte de Brás Afonso, 1.º Senhor da Casa dos Bicos, o seu património é alvo de um longo litígio familiar durante vários anos, primeiro entre o seu filho bastardo, legitimado, João Afonso de Albuquerque e a viúva de seu pai, D. Catarina de Meneses, e depois entre João Afonso de Albuquerque e outros representantes da família de seu pai, alegando todos os seus direitos por serem descendentes de Gonçalo de Albuquerque, pai de Afonso Albuquerque. Entre 1620 e 1642, a casa esteve nas mãos do bastardo João Afonso de Albuquerque,2.º Senhor da Casa dos Bicos, já a Quinta da Bacalhoa foi perdida para a sua madrasta.

Movimento na rua em frente à Casa dos Bicos, 1906-1908.
Fotografia de Machado & Souza, in AML 

A 1649, D. Afonso de Albugeurqre (neto de Brás de Albuquerque), e sua mulher Violante de Tavora, doam um morgadio que incluía a Casa dos Bicos ao sobrinho António de Albuquerque, Comendador de Santo André do Ervedal e Ilha de Porto Santo, 3.º Senhor da Casa dos Bicos. Na escritura de doação era condição a perpetuação do apelido "Albuquerque" pela sua descendência, na relançar dos bens a Cada dos Bicos é referida como "as casas da Porta do Mar, na Ribeira" cuja dependências se encontravam então alugadas. Com a morte do Comendador a casa passa para seu filho Dom Afonso de Albuquerque, 4.º Senhor da Casa dos Bicos, que na ausência de descendência direita, vai ser herdada por um sobrinho seu, Dom Manuel Teles de Meneses e Albuquerque, 5.º Senhor da Casa dos Bicos, que morre na casa a 1722, passando a casa para seu filho Dom Brás de Albuquerque, 6.º Senhor da Casa dos Bicos.

Rua em frente à Casa dos Bicos, c.1940.
Fotografia de Branco, António Castelo, in AML 

Em 1745, Francisco Xavier Teles de Meneses e Albuquerque, sobrinho de Dom Manuel Teles de Meneses e Albuquerque, e 7.º Senhor da Casa dos Bicos, toma posse na sucessão da casa, à qual se refere como "casa nobre com loja por baixo, onde se vendem bebidas". Uma década depois, o terramoto causa grandes estragos na estrutura original, na sequência de um incêndio que se segui, a fachada principal que ficava virada à actual Rua Afonso de Albuquerque, caiu, e os dois andares cimeiros de todo o edifício ruíram. Em 1772 o edifício foi parcialmente reconstruir, mas a estrutura quinhentista ficou irremediavelmente alterada.

Casa dos Bicos e torres da Sé Patriarcal, 1958
Fotografia de Fernandes, Salvador de Almeida, in AML 

A Dom Francisco de Teles de Meneses e Albuquerque sucede seu filho, Dom Pedro Teles de Melo e Albuquerque, 8.º Senhor da Casa dos Bicos, e a este sucede seu filho, Dom Francisco Menezes e Albuquerque, 9.º Senhor da Casa dos Bicos, que em 1827, por dívidas de décimas deste e outros prédios que possuía, deixa que a casa seja vendida em praça pública(pela fazenda nacional), na sequência de uma penhora de 14.800$00 réis. A casa é arrematada por 14.500$00 réis, pelo inclino Caetano Lopes da Silva, negociante de bacalhau, estabelecido nas dependências inferiores da casa, a família desde honrado comerciante, que já havia herdado o negócio, manteve ali durante várias gerações a antiga bacalhoeira.

Durante as obras la linha férrea em frente à Casa dos Bicos, s/d
Fotografia de Figueiredo, Vasco Gouveia de, in AML 

Pelo ano de 1838, Francisco António Marques Giraldes Barba, tutor do menor Pedro João Teles de Melo e Albuquerque, sucessor do antigo senhor desta casa, notificou o comerciante comprador para restituir os direitos da casa ao descendente legal, uma vez que detectara irregularidades na venda da casa. Caetano Lopes Silva, depois de se aconselhar legalmente, percebe que a casa foi ilegalmente posta em praça e reconhece o direito do menor voltando à condição de inclino com uma renda anual de 500$00 réis, passando Pedro João Teles de Melo e Albuquerque a 10.º Senhor da Casa dos Bicos. Segundo os registos, embora lhe coubesse o direito, o valor perdido pela compra da casa cujo fisco não podia vender, não chegou a ser reclamado nem por si nem pelos seus filhos.

Casa dos Bicos e casa das Varandas, c.1900
Fotografia Guedes, Paulo (1886-1947), in AML 

A Pedro João Teles de Melo e Albuquerque, sucedeu seu filho Francisco Maria Teles de Melo, 11.º Senhor e ultimo Albuquerque da Casa dos Bicos, que em consequência de dívidas, em 1873 vendeu a casa a Joaquim Caetano Lopes da Silva, neto do bacalhoeiro que quarenta e seis anos antes, compra o edifício ao avô do vendedor.

Porta manuelina da Casa dos Bicos, c.1940
Fotografia de Branco, António Castelo, AML 

Com a morde de Joaquim Caetano Lopes da Silva em 1876 e a sua viúva vinte anos depois, sucedeu em 1899 na posse da Casa dos Bicos, o filho do casal Joaquim Lopes da Silva e depois, em 1905, a filha deste, Daisy Maria da Silva, que embora residente em Londres, seria proprietária da famosa casa. Por esta altura o edifício encontra-se destinado ao comércio, nomeadamente no armazenamento de bacalhau, atividade ali desenvolvida durante décadas, e na sobreloja voltada para a Rua Afonso de Albuquerque, instalou-se uma oficina tipográfica de J. Gomes Monteiro.

Casa dos Bicos, fachada 1966
Fotografia de Estúdio Mário Novais (1933-1983), in AML 

Classificada como Monumento Nacional em 2010, data a partir da qual é despertado algum interesse municipal pelo histórico edifício, com manifestada intenção de o adquirir, com va´rias tentativas levadas a cabo entre 1924 e 1933, todavia as tentativas de negociação não surtiram o efeito desejado. Em 1949, a possibilidade de adquirir o imóvel "volta a estar na mesa" desta vez com um projeto mais definido para a criação do Museu da Casa Quinhentista, para alem do interesse histórico, há um interesse arqueológico associado ao local.

Fachada Principal da Casa dos Bicos, 1964
Fotografia de Pastor, Artur. (1922-1999), in AML/SIPA 

Só em 1963 a Câmara Municipal de Lisboa acaba por adquire o histórico edifício com o intuito de o aproveitar para enaltecer os descobrimentos ao oriente. Neste sentido em 1968, encomenda ao arquiteto Raul Lino um projeto de adaptação da Casa dos Bicos a museu "Casa de Goa". Com efeito entre 1968 e 1973 são realizadas algumas obras de restauro no edifício durante as quais descobre uma porta localizada abaixo do nível térreo, voltada a norte, ao que tudo indica construída para estabelecer a ligação entre o portal de acesso à residência por aquela rua.

Aspeto da fachada principal da Casa dos Bicos em 1977
Fotografia de Águas, José Neves. (1920-1991), publicista, In AML. 

Em 1976 o Variador e Engenheiro Aquilino Ribeiro Machado, persistindo na ideia de ali instalar um museu de temática luso-indiana, encarregou o arquitecto José Daniel Santa-Rita Fernandes de elaborar um projeto de reedificação revivalista quinhentista do edifício, para tal contou com a ajuda de um Representante dos Serviços do Museu da Cidade, todavia a construção não avançou uma vez que o projeto se tenha manifestado aquém dos objetivos pretendidos.

Detalhe da fachada da Casa dos Bicos, pouco tempo antes das obras de reconstrução, antes de 1983
Fotografia de Pastor, Artur (1922-1999), In AML. 

Só em 1981, o Comissariado da XVII Exposição Europeia de Arte, Ciência e Cultura, promovida pelo Conselho da Europa, decidiu recuperar a Casa dos Bicos para nela instalar o núcleo daquela exposição "A dinastia de Avis e a Europa do Renascimento" a decorrer em 1983. encomendar a este arquiteto novo projeto, de recuperação da Casa dos Bicos. Neste sentido, decide desde logo, chamar o arquiteto já familiarizado com a casa para desenhado o plano de recuperação e adaptação. O espaço foi então adaptado às novas funções museológicas, sendo acrescentados ao edifício os dois andares que perdera com o terramoto. A fachada foi reconstruída segundo imagens antigas de Lisboa que mostram a estrutura original da casa de Brás de Albuquerque, nomeadamente o painel de azulejos da Ribeira Velha pintado no início do século XVIII.

Projeto "3D" da nova "Casa dos Bicos", este fidedigno da construção original,
foto consultada em madespesapublica.blogspot.com. 

Por recomendação da Câmara Municipal de Lisboa, que pretendia salvaguardar os interesses arqueológicos do local, o Comissariado da XVII Exposição Europeia de Arte, Ciência e Cultura inicia as obras em 1982 sob a orientação da DGEMN; uma equipa de arqueólogos que fazem as primeiras intervenções de escavações no local.

Estas escavações decorridas entre 1981 e 1983, vieram confirmar construções anteriores adjacentes à velha muralha, para alem de artefactos relacionados com o quotidiano da presença romana no local, nomeadamente industria de salmoura que seria realizada no local, as escavações posarem puseram também a descoberto um fragmento de um arco ogival que se encontrava embebido numa parede do lado da Rua Afonso Albuquerque, certamente pertencente à primitiva construção gótica. Este portal com moldura manuelina que dava acesso a um pequeno pátio donde partia a escadaria que servia de mais um passadiço para os que do interior da cidade, pretendiam alcançar a praia. Era através deste portal e pátio que se fazia o acesso para os andares nobres e era sobre ele que estava colocado o brasão dos Albuquerques. Durante estas obras, esta porta primitiva, o fragmento do arco em ogiva de origem gótica também já referido e uma escada que dava acesso à saída para a praia, foram retirados do imóvel.

Fachada principal da Casa dos Bicos, com o aspeto atual revivalista.
Bilhete Posta Edições JAMP, Foro de Andrés Murillo, em delcampe.net.

A configuração atual dos arcos que emolduram as janelas na fachada dos bicos, ocorreu em 1983 na sequência de remodelações, conforme projeto do arquiteto António Marques Miguel, as formas dos arcos das janelas vem acrescentar personalidade à casa já com o seu carácter bem vincado pelos bicos.

Casa dos Bicos adaptada à Fundação José Saramago, 
Bilhete Posta Dinternal, fotografia d'Alvis, em delcampe.net.

A casa vai acolher a extinta Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses entre 1986 e 2002. durante a década quu se segue, embora à casa não se tenha dado uma função á sua altura, decorrem vários pedidos de reclassificação patrimonial conjunta que acaba por ser atribuído em 2011 como definição de Zona Especial de Proteção conjunta do castelo de São Jorge e restos das cercas de Lisboa, Baixa Pombalina e imóveis classificados na sua área envolvente.

Casa dos Bicos adaptada à Fundação José Saramago, 2018
Foto extraída do jornal Hojemacau.com, aqui.

Desde 2012 que a Casa dos Bicos acolhe a sede da Fundação José Saramago, uma instituição cultural privada, constituída pelo próprio escritor em 2007, José Saramago, Prémio Nobel da Literatura de 1998 teve como objectivo, na criação desta fundação, a defesa e difusão da Declaração Universal dos Direitos Humanos, a promoção da cultura em Portugal e em todo o mundo e a defesa do meio ambiente.

Fachada principal da Casa dos Bicos, com o aspeto atual revivalista.
Bilhete Posta Dinternal, fotografia d'Alvis, em delcampe.net.

Fontes:
"Lisboa Venha e Lisboa Nova", Archivo Pittoresco n. 10 de 1860;
"Inventário de Lisboa", Fascículo V, Norberto de Araújo, 1947;
"Inventário de Lisboa", Fascículo IX, Norberto de Araújo, 1952;
"Casa dos Bicos - O Sítio e o Edifício", Revista Municipal trimestral "Lisboa", 2.ª Série, n.º 18, 1986;
"Casa dos Bicos - O Sítio e o Edifício II", Revista Municipal trimestral "Lisboa", 2.ª Série, n.º 19, 1987;
"Casa de Brás de Albuquerque (casa dos Bicos), fachada", Digerção Geral do Património Cultural, texto de Catarina Oliveira, 2012;
"Casa de Brás de Albuquerque / Casa dos Bicos", Sistemas de Informação para o Património Arquitetónico", texto de João Silva, 1992:

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